É
difícil negar ou tentar contrariar o espaço de dominância ocupado pelo visual e que é gerador de preponderância
na definição dos pilares da
cultura contemporânea. A vista é o mais forte dos sentidos e o visual é
catapultado a elemento predominante na criação e interpretação dos modelos de
percepção e é “one which is primary and predominant, at least in the conduct of
our everyday lives” (Lenvin, 1993: 02). A narrativa que sustenta a hegemonia da
visão tem a sua origem a partir da Modernidade, período que nasce com a
descoberta da perspectiva e da racionalização do espaço que se verificou com o
Renascimento, no séc. XV. (Lenvin, 1993).
Apesar
desse momento marcante para o visual que se verificou com Renascimento e com o
aparecimento de uma cultura das lentes, já
anteriormente se tinha percebido a sua importância na construção do pensamento e do conhecimento. Filósofos da Grécia
antiga como Heraclito[1], que
valorizava o visual e colocava a visão acima de todos os outros sentidos,
Parménides[2],
Aristóteles[3]
e Platão[4],
que até chegou a falar nos olhos da mente[5],
perceberam a importância da visão e reflectiram sobre a influência que tinha
junto dos Homens. Tal aconteceu com muitos outros filósofos que fora do
contexto temporal da Grécia antiga, não resistiram a olhar para a importância
da visão e “have abounded with ocular metaphors to the point that knowledge has
become analogous with clear vision and light is regarded as the metaphor for
truth” (Pallasmaa, 2008: 15).
Antropologicamente
existiram outros momentos da história da humanidade com outros sentidos a
dominarem e a serem os elementos primordiais na interpretação do mundo, como
por exemplo a audição. A passagem da audição para a visão como sentido
dominante para a interpretação do mundo, é comparável com a passagem da
oralidade para a escrita aquando do aparecimento desta última[6].
Sobre esta questão, Lucien Febvre disse que: “The
sixteenth century did not see first: it heard and smelled, it sniffed the air
rand caught sounds. It was only later that it seriously and actively became
engaged in geometry, focusing attention on the world of forms with Kepler and
Desergues of Lyon. It was then that vision was unleashed in the world of
science as it was in the world of physical sensations, and the world of beauty
as well” (in Pallasmaa, 2008: 25).
Apesar
dos restantes sentidos continuarem a despertar algum interesse no comportamento
e na comunicação, o modelo de ocularcentrismo,
que apresenta a visão como a forma superior para o conhecimento do mundo e com
o pensamento a ter como base a vista - “thinking itself thought of in terms of
seeing” (Pallasmaa, 2008: 15), faz levantar questões como as apresentadas por
Heidegger[7],
ao reflectir na relação com o cinema e a rádio, e por Horkheimer[8],
ao relacionar este modelo com a tecnologia. A verdade, é que as sociedades
contemporâneas adoptaram o ocularcentrismo
porque a “technological culture has ordered and separated the senses even
more distinctly. Vision and hearing are now the privileged sociable senses...”(Pallasmaa,
2008: 16), não sem a necessidade de
se reflectir a propósito da possibilidade de novos modelos surgirem e colocar
causa a hegemonia que temos vindo a tratar. Para além de autores como
Heidegger, Foucault e Derrida que expressaram a possibilidade de criação de
novos modelos de ocularcentrismo
(Lenvin, 1993), foi Hannah Arendt a considerar a possibilidade de um novo paradigma
baseado na fala e na escuta em crescimento nas sociedades, “...and whether she
could be right about the future importance of the logos, of a paradigm based on
speaking and listening” (Lenvin, 1993: 03).
De
volta ao séc. XV, o Renascimento coloca a visão como o principal dos sentidos,
à frente de todos os outros numa hierarquia que colocava o tacto em último
lugar, “Only sensations such as the olfactory enjoyment of a meal, fragrance of
flowers and responses to temperature are allowed to draw collective awareness
in our ocularcentric and obsessively hygienic code of culture” (Pallasmaa,
2008: 16). O ocularcentrico formula o paradigma da relação do Homem com o mundo
e com o seu conceito de conhecimento. Para esta valorização, muito contribuiu o
surgimento dos primeiros tratados sobre a perspectiva que condicionaram e
formataram a percepção. Para melhor compreender esta relação entre o
Renascimento e o ocularcentrismo e antes de olharmos para o regime escópico da
modernidade sugerido por Martin Jay, é importante falar da linha direita ou
recta – Straight line.
Entre
as características transmitidas pela linha recta, Ian King destaca a direcção,
a energia, a força e, também, a racionalidade e controlo como justificações
para este traço se ter tornado tão importante, “straight line represents
man-kind’s most significant and fundamental contribution since the development
of the Wheel”[9] (2007: 226).
É claro que esta linha já existia e não é ao Renascimento que é atribuída a sua
criação, no entanto, é neste período, e na sua ligação com a geometria, que
ganha importância, “in the Renaissance, geometry was truth and all nature was a
vast geometrical system” (Gablik, 1977: 103). Foi o que aconteceu na Itália do
Renascimento com a utilização de uma perspectiva linear onde o objecto é criado
fazendo uso de um ponto de fuga colocado
no eixo da visão e com o objecto
colocado acima da linha do horizonte
(linha que se refere ao centro do olhar de quem vê a obra), tal como demonstra
a figura 01.
Fig.
01 – O Objecto e a sua representação através da utilização da perspectiva
linear
Os
objectos mais pequenos são os que estão mais longe, e os maiores são os que
estão mais próximos. Um dos pioneiros da perspectiva linear foi o arquitecto da
renascença Brunelleschi que se dedicou aos estudos matemáticos da perspectiva
linear. Na figura 02 vê-se o desenho da igreja do Espírito Santo, feito pelo
arquitecto, onde a utilização da perspectiva linear transmite a noção de
profundidade e representa o que viria a ser a obre depois da sua conclusão.
Fig.
02 – Esboço da igreja do Espírito Santo
È à
perspectiva que devem ser atribuídos os méritos de conseguir passar a noção de
tridimensionalidade de um objecto para o plano bidimensional. Para além das
perspectivas linear e da hierárquica, esta última mais utilizada na idade
média, existem outras perspectivas como a geométrica, que resulta de uma
convenção arbitrária, e a atmosférica, que joga com as variações de luz e cor.
Leon
Alberti[10]
é considerado como o primeiro a formular sobre a perspectiva e criar as suas
leis. Em della pittura[11]
(1435) Alberti considera necessária a existência de uma grelha para auxiliar na
percepção das alterações induzidas pela distância entre o artista e o objecto.
As suas ideias influenciaram autores como Piero Della Francesca[12]
que na obra Flagelação de Cristo (figura
03) consegue uma verdadeira perfeição
geométrica. Como o próprio nome da obra indica, o tema do quadro é a flagelação
de Cristo pelos romanos durante a Paixão, e representada numa galeria aberta
atrás do espaço onde três figuras conversam[13].
A perspectiva linear é percebida pela relação e disposição dos vários objectos
em diferentes profundidades, pelas grandezas e distâncias.
Fig.
03 – A flagelação de Cristo. Pierro Della Francesca
As
explicações até aqui apresentadas tornam mais fácil a interpretação do
pensamento de Martin Jay[14]
(1988), sobre a existência de três subculturas visuais no Regime Escópico[15]
na modernidade: a Perspectiva Cartesiana, relacionada com o Renascimento
italiano; a Arte da Descrição, associada à pintura setecentista dos países
baixos e, por fim, o Barroco, associado à filosofia de Leibniz e de Pascal. O
foco do presente trabalho está nas duas primeiras subculturas. Martin Jay tem como ponto de partida a seguinte pergunta:
“is there one unified ‘scopic regime’ of the modern or are there several,
perhaps competing ones?” (Jay, 1988: 3), e a sua
base de pensamento é o ocularcênctrico[16],
onde a visão é o principal dos sentidos.
O
regime escópico está aqui delimitado à modernidade, à revolução científica que
aconteceu no Renascimento. Por exemplo, a invenção da imprensa veio reforçar o
papel do visual, tal como a invenção
do telescópio e de outros instrumentos relacionados coma visão.
Apesar das diferentes origens e
atribuições de significado do termo escópico, Jay inspira-se no pensamento de
Christian Metz em The Imaginary Signifier
(1981) onde é feita uma distinção entre o cinema e o teatro. Metz considera que
o regime escópico do cinema não é, tanto, a distância mantida, mas uma
localização cultural da visão e da visualidade[17]
(uma espécie de contextualização cultural da visão), que se associa a uma
dimensão histórica, i.e. as tecnologias da visão estão localizadas e envolvidas
em momentos históricos particulares. Metz amplia o alcance de campo escópico para regime escópico.
Para
melhor compreender a diferença entre a Perspectiva Cartesiana e a Arte da
Descrição importa desde já efectuar uma separação entre o Renascimento na Itália
e o Renascimento setecentista no Norte da Europa. Se na Itália tivemos uma
parte da revolução da “conquista do mundo visível” (Janson, 1998: 371),
sistemática e fundamental por não se ter confinado à pintura – Proto- renascimento -, uma outra parte
desta revolução aconteceu no Norte da Europa. O primeiro caso tem como berço a
cidade/zona de Florença, com destaque para uma narrativa religiosa e a representação
da natureza a ser executada de forma científica e matemática, “the Italian approach as pictorial narration and hence
providing the nature of how painting should be”
(Alpers in King, 2007: 232). Por sua
vez, a pintura setecentista do norte da Europa tem como origem a cidade de
Bruges e tratava, principalmente, de temas da contemporaneidade, com uma forte
componente descritiva através da valorização do detalhe e do pormenor. A
pintura italiana era de contornos mais fortes e globais, enquanto a
setecentista estava mais preocupada com a colocação de objectos na cena, “an approach that would concentrate on painstakingly
copying each object and then carefully placing them in appropriate places
within the frame in order to overall capture the spirit and message of the
artist” (Grombich in King, 2007: 234).
Onde
na pintura italiana à distanciação na do Norte da Europa há aproximação.
Dois
exemplos[18]
onde se verificam as diferenças atrás referidas são as obras de Fra Angélico[19],
A Anunciação (figura 04), e a de Jan Van Eyck[20],
O Casal Arnolfini (figura 05). No primeiro caso temos a narração de
uma cena bíblica, com o anúncio do anjo Gabriel a Maria. A perspectiva linear
está patente com a representação de um espaço geométrico. No segundo caso há a
inclusão de objectos vários na cena para proporcionar uma leitura simbólica[21].
No Seguimento deste trabalho as descrições feitas sobre a Perspectiva
Cartesiana e a Arte da descrição permitem uma melhor compreensão sobre as
diferenças da pintura do Renascimento italiano e do Renascimento nórdico.
Fig.
04 – A anunciação. Fra Angélico.
Fig.
05 – O casal Arnolfini. Jan Van Eyck.
A
Perspectiva Cartesiana chegou a ser considerada como um modelo capaz de dominar
a era moderna, “The assumption
expressed in these citations that cartesian perspectivalism in the reigning visual
model of modernity” (Jay, 1988:5). Esta perspectiva
inspira-se no sistema filosófico de Descartes, filosofo francês de temperamento
matemático e sensível à necessidade de existência de ordem e de clareza.
Seguidor de uma linha de pensamento prático e não especulativo, Descartes
acreditava que a disciplina só poderia ser alcançada com a aplicação de um método universal, racionalista e com
rigor matemático. O método cartesiano
é isso mesmo, por apenas aceitar o que é certo, irrefutável, recusar o
inseguro, e, como tal, abdicar totalmente dos sentimentos.
A Perspectiva
Cartesiana está associada ao Renascimento. A Idade Média, período que antecedeu
ao Renascimento, terminou quando se deu o ressurgimento das artes e das
ciências que tinham tido uma fase de vigor no período clássico, que, por sua
vez, antecedeu a Idade Média. A queda do Império Romano, que não resistiu às
invasões Barbaras, originou um período de trevas
caracterizado por um adormecimento que foi gerador do Renascimento por
despertar e fazer renascer e que era “uma espécie de retorno…” (Janson, 1998: 366).
Havia um apelo aos ressurgimento dos clássicos com uma perspectiva reveladora
de um humanismo individualista, “a consciência e a afirmação do próprio Eu
leva-o a proclamar, contra toda a autoridade estabelecida, a sua convicção de
que a ‘idade da fé’ era de facto um período de trevas, ao passo que os ‘ignorantes
pagãos’ da antiguidade representavam na verdade a mais esclarecida idade da
História” (Janson, 1998:367). É um redescobrimento não uma cópia, porque o
interesse é superar as obras da antiguidade.
A forma
científica de ver o mundo na sua experiência natural legitima a valorização da
importância do modelo da Perspectiva Cartesiana – a ordem do mundo é definida
de uma forma científica representada por uma construção racional, porque o
mundo é visto pela razão. Há um ajuste da visão científica do mundo que se
converte em forma de pensamento e as massas de então eram concordantes com essa
forma de ver o mundo.
O mundo
é valorizado e expresso através da ciência, como se existisse uma explicação
para tudo. Verifica-se uma matemática através da esquematização da natureza e
uma harmonia entre a matemática, a visão e a vontade de Deus. A matemática sai
vitoriosa do seu confronto com a natureza e o espaço é rectilíneo e uniforme.
São criadas duas pirâmides, uma entre quem vê e o que está narrado, e outra,
entre o ponto de fuga e quem vê.
Tudo se resume a uma visão monocular
comandada pela lógica do olhar fixo e contemplativo, com um único ponto de
vista. O olhar a estende-se desde um ponto de vista e vagueia por uma simetria
do espaço que reflecte uma tridimensionalidade. Tal facto é bem patente na obra
de Rafael Sanzio[22], com o
título Scuola di Atenas[23]
(figura 06), onde a academia de Platão é representada. Ao centro Platão, a
segurar o Timeu[24],
aponta para o céu em representação e defesa do mundo inteligível, a seu lado,
Aristóteles, que segura a ética, representa e defende o mundo sensível. O olhar
de quem vê a obra é fixo, apesar de se estender num corredor de salões. A
janela[25]
abre-se e deixa ver a cena narrada que está do outro lado da janela. O espectador
continua do lado de fora da cena que se abre e deixa ver o que está do outro
lado.
Fig.
06 – Scuola di Atenas. Rafael Sanzio.
Ao
tentar explicar o mundo pela razão, o artista perde a possibilidade de
apresentar as suas emoções (tão importante na arte dos dias de hoje). Na mente
cria-se a ideia de que apenas há uma forma de ver o mundo, a forma apresentada.
Tudo é construído a partir de um olhar, que se pretende, exterior à cena
narrada, “a essa desencarnação do mundo-objecto (e dos sujeitos nele inseridos)
esse olhar corresponde a uma filosofia cartesiana, um subjectivismo
racionalizante” (Vieira, 2006:11).
Um dos
exemplos é a obra de Masolino de Panicale[26],
The Annunciation, de 1423-24. Nesta obra o pintor decide representar
o momento em que o anjo Gabriel comunica a Maria que iria ser Mãe de Jesus.
Maria, apanhada de súbito, olha para baixo, e reflecte na sua submissão à
vontade de Deus. Há uma assimetria na imagem com a cena representada em
destaque. O espaço tem o prolongamento do olhar de quem vê e que nem sequer é
interrompido pelos limites do espaço onde se verifica o anúncio. Uma porta
aberta prolonga o olhar de quem vê a imagem e dá a profundidade de campo
necessário para que o olhar se estenda.
Fig.
07 – The annunciation. Masolino de Panicole.
O
desenvolvimento da pintura a óleo, resultante da diluição dos pigmentos com
óleo, cria as condições propícias para o aparecimento de uma forma de ver o mundo afastada do cartesianismo. A
têmpera foi a técnica de pintura mais utilizada na pintura em madeira durante
idade média, mas não permitia “realizar uma fusão ou transição suave de cores,
nem se conseguia aquela progressão contínua de valores, sem a qual era difícil
obter o efeito de relevo” (Janson, 1998: 374). A nova pintura que emergia nos
países baixos no séc. XVI[27],
com novas tintas e técnicas, abafou a hegemonia que até então se tinha
verificado da pintura italiana. Tintas viscosas de secagem lenta e mais
brilhantes contrariam os problemas
atrás referidos com a Têmpera. A possibilidade de novos efeitos, novos tons e
uma melhor capacidade de representar a luz e as sombras geram uma perspectiva
inovadora na forma de descobrir o mundo com elementos de demonstração
capitalista a serem introduzidos, “sem o óleo a conquista da realidade visível
pelos mestres flamengos ficaria assaz limitada” (Janson, 1998: 374). O artista
saiu do ateliê e foi para o exterior para poder representar o que era realmente
visto. A exteriorização do artista revolucionou
o instituído e colocou-o em contacto directo com o objecto da sua pintura, o
que equivale a dizer que passa a existir uma nova atitude com a terra. A
pintura deixa de ser uma história/narrativa criada em laboratório, para passar a ser a descrição do que é visto, “em vez
de trabalhar a partir de sua mente ou imaginação, o artista sai ao ar livre e
tenta capturar a grande amplidão da planura holandesa” (Alpeers, 1999:
28-29).Um dos primeiros artistas a sair do ateliê terá sido Hendrik Goltzius[28]
que no ano de 1602 pintou a obra com o título paisagem de dunas perto de Haarlem.
É a
Arte da Descrição que surge da necessidade de “exprimir uma visão especial da
vida” (Berger: 1996: 88) e que até ao desenvolvimento da pintura a óleo não era
possível. A Perspectiva Cartesiana estava associada a um distanciamento e a uma
passagem para um mundo substituto e associada à perspectiva albertiana, por sua vez, na Arte da
Descrição, o ponto de fuga de Alberti é substituído
por um ponto de distância (Alpeers, 1999) e o mundo passa a ser apresentado
“a partir de sua própria sensualidade” (Vieira, 2006:11)
O termo
descrição, então associado à literatura e não à pintura e por isso não
utilizado em associação com a pintura, deriva do latim, scribo, e do grego, grapho.
Outra palavra grega associada à descrição é ekphrasis,
utilizada para a evocação verbal de pessoas, lugares, edifícios e obras de
arte, era um instrumento retórico que dependia do poder das palavras. Foi esse
poder que os pintores renascentistas da Holanda tentaram aplicar na pintura. O
colocar o mundo numa pintura, o descrever – “os artistas e os geógrafos estavam
relacionados não só genericamente. Graças ao seu interesse em descrever o
mundo, mas também especificamente, por seu interesse na escrita” (Alpers, 1999:
24).
John
Berger no livro “Modos de ver” (1980) descreve alguns dos géneros da pintura a
óleo: a pintura de mercadoria, associada a tudo o que se poderia comprar; a
pintura animalista, associada ao gado; a pintura de objectos; a pintura de
edifícios, a pintura de quadro histórico ou mitológico, associada à legitimação
e tal como os clássicos passava informações sobre o como a classe dirigente
deveria de actuar; a pintura de género, que era contraria à anterior e retratava a vida dos pobres e, por fim,
a pintura de paisagem, como cenário onde se desenrola o capitalismo.
O campo
visual deixa de ser o prolongamento do olhar do pintor. A continuação do olhar
é cortada com o aparecimento de uma nova perspectiva em que o pintor deixa de
representar a continuação daquilo que vê. Já não é a janela que se abre e deixa
olhar, mas uma descrição que realça a atenção para com os detalhes e a
superfície dos objectos que é apresentada na tela, “…não era uma janela,
segundo o modelo italiano, mas sim, como um mapa, uma superfície sobre a qual
se faz uma montagem do mundo” (Alpers, 1999: 7) – um mundo de objectos com a
sua colocação no espaço visual. Há uma maior atenção em descrever do que em
explicar, o olhar deixa de efectuar a leitura de uma narrativa e passa a
assistir a algo descrito, “Northern
art, in contrast, suppresses narrative and textual reference in favour of description
and visual surface” (Jay, 1980:12). O Presente deixa de
narrar e no seu lugar surge um passado que quer ter influência na forma de se
ver o Presente e o Futuro, “um modo de ver o mundo, em última análise
determinado pelas novas atitudes perante a prosperidade e as relações de troca”
(Berger: 1996: 91). Um dos exemplos é a obra de JohannesVermeer[29],
A Vista de Delfos (figura 08). Nesta obra o pintor holandês dá a ver
a luz natural de um determinado momento do dia. Para tal, faz uma divisão da
obra em quatro bandas horizontais: o areal, a água (rio Schie), os edifícios da
cidade e o céu. No areal algumas pessoas: duas mulheres a caminharem, dois
homens e uma mulher à conversa e uma mulher com uma criança no colo. Na água,
alguns barcos e o reflexo dos edifícios que, por sua vez, ocupam uma das bandas
horizontais. Sobre o reflexo na água é provável que Vermeer tenha utilizado uma
câmara escura e conseguido a realização do reflexo através da técnica de pointillist[30].
Os edifícios, dos quais se destacam as portas
de Schiedam e de Roterdão e as torres do que então eram a nova e a velha
igreja, apresentam diferentes tonalidades por causa do que está a acontecer no
céu (porta de entrada da luz), alguns telhados e cúpulas têm uma cor mais viva.
A última banda é a que ocupa mais espaço da obra e oferece-nos uma sensação de
continuidade espacial. O azul do céu e as nuvens brancas é interrompido pelas
nuvens escuras que surpreendem e tão bem caracterizam o clima holandês. O local
de vista é um local mais elevado que a linha de terra. O pintor não está ao
nível nem do areal nem da cidade mas coloca-se num ponto mais alto.
Fig. 08 –A Vista
de Delfos. JohannesVermeer
A
materialização da pintura a óleo é incapaz de se ausentar quando são
introduzidos elementos metafísicos numa pintura. Traduz uma nova riqueza[31],
uma “expressão de uma boa vida” (Alpers, 1999: 44) e um despertar de desejos
porque “a própria pintura tinha de ser capaz de demonstrar a desejabilidade de
tudo o que o dinheiro podia comprar” (Berger: 1996: 94). Os objectos que acompanham
a figura de alguém revelam a pessoa que é, o seu lugar no mundo[32],
“o objectivo dos pintores holandeses era captar, sobre uma superfície, uma
grande quantidade de conhecimentos e informações sobre o mundo” (Alpers, 1999:
6). A arte da descrição antecipa o aparecimento de outros modelos visuais como
por exemplo a fotografia pois passou a existir uma materialidade, excepto em
relação à alma.
Bibliografia:
Alpers,
Svetlana (1999). A arte de descrever. A arte holandesa no séc XVII. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo
Arendt,
Hannah (1978). The Life of the Mind.
NY: Harcourt.
Berger,
J. (1996). Modos de Ver. Lisboa: Edições 70.
Gablik, S. (1977). Progress in art. NY: Rizzoli
Janson,
H.W. (1998). História da Arte. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian
Jay,
Martin (1988). “Scopic Regimes of
Modernity”, Vision and Visuality. Seattle: Bay Press, pp 3-23
King, I.W. (2007). Straightening our Perspective: The
Logos of the Line. Sage
Levin, D.M. (1993). Introduction In Modernity and the hegemony of Visions. University of Califórnia
press.
Metz, C. (1981). The Imaginary Signifier: Psychoanalysis And
The Cinema. Bloomington:
Indiana University Press.
Pallasmaa, Juliano (2008). The eyes of the skin. West
Sussex: Wiley and sons
VIEIRA, Daniel de Sousa L. (2006). “Paisagem
e Imaginário: Contribuições Teóricas para uma História Cultural do Olhar”,
Revista Fênix – Revista de História e Estudos Culturais, Vol. 03, No.3.
Villafañe, J. (1992). Introducción a la Teoria de
la Imagen. Madrid:, Ediciones
Pirámide.
Internet
(consultas realizadas entre Março e Julho)
http://www.essentialvermeer.com/cat_about/view.html
http://www.lcc.gatech.edu/~broglio/1102/scopic_regimes.html
[1]
Filósofo grego que viveu entre 535 a.C. e 475 a.C., que é considerado o pai da
Dialéctica.
[2]
Filósofo grego que viveu entre 530 a.C. e 515 a.C.
[3]
Filósofo grego, aluno de Platão e que viveu entre 384 a.C. e 322 a.C.
[4]
Filósofo de Atenas que viveu entre 428/427 a.C. e 348/347 a.C.
[5]
No inglês The mind’s eye.
[7]
Consultar a obra de Martin Heideger, “The Turning”.
[8]
Consultar a obra de Max Horkheimer, “Down and Decline”.
[9] Esta é sem
duvida uma frase controversa e capaz de motivar apaixonadas discussões.
[10] Humanista
italiano, arquitecto e teórica da arte. Nasceu em Génova no ano de 1404 e
faleceu em Roma em 1472.
[11] Escrito por Leon
Alberti, este documento tornou-se no primeiro referencial com indicações sobre as leis da óptica da
visão.
[12] Pintor italiano da
segunda fase do renascimento, Nasceu em 1415 e faleceu em 1492.
[13] Um dos grandes
enigmas desta obra é a identidade das três personagens que conversam à frente
da cena e do elemento que está sentado ao fundo.
[14]
Professor de História na Universidade da Califórnia, Barkeley. Lecciona
matérias relacionadas com a História Intelectual da Europa e autor de várias
obras como: The Dialectical Imagination (1973); Marxism and totalitarism (1984);
Adorno (1984) e Permanent Exiles (1985).
[15]
Por
Regime Escópico entende-se a diferenciação das
subculturas visuais cuja separação permite compreender as múltiplas implicações
da visão.
[16]
Para
o autor o regime escópico é definido
pela “era ocularcênctrica” que começa a partir do Renascimento e tem grande
impulso com a revolução científica. A invenção da impressão, fotografia, o
telescópio, o microscópio e o cinema são um importante campo de percepção da
visão.
[18] As obras
utilizadas como exemplos mereciam neste trabalho uma leitura mais atenta e
pormenorizada, no entanto, apenas se pretende efectuar a comparação entre a
pintura do Renascimento italiano e a pintura do Renascimento nórdico.
[19] Pintor italiano
que apesar de ser assim conhecido por causa da sua tendência para pintar anjos,
tinha como verdadeiro nome Giovanni da Fiesole. Nasceu em 1387 e faleceu em
1455.
[20] Pintor flamengo
que influenciou fortemente o Renascimento nórdico. Nasceu em 1390 e faleceu em
1441.
[21] Por exemplo os
candelabros a velas e o espelho permitem identificar o nível e as condições de
vida do casal.
[22]
Também conhecido por Raffaelo, nasceu em 1483 e morreu em 1520. Mestre da
pintura e da arquitectura da escola de Florença, é considerado, juntamente com
Michelangelo e Da Vinci, um dos principais artistas do alto Renascimento
italiano.
[23]
Considerada uma das mais importantes obras do Renascimento italiano.
[24]
Tratado teórico de Platão escrito em 390 a.C., onde o filósofo apresenta um
conjunto de especulações sobre a natureza do mundo físico.
[25]
Alusão à janela de Alberti.
[26]
Pintor italiano da passagem do séc. XIV para o XV que estudou perspectiva com
Masaccio, com quem colaborou na elaboração de vários frescos em Florença.
[27]
John Berger em texto do livro “Modos de Ver” indica que a técnica de diluir
pigmentos em óleo já existia e como tal será preferível falar numa nova forma
de expressão artística.
[28] Pintor holandês
que nasceu em 1558 e morreu 1617. A deficiência física que tinha na mão direita
não o impediu de ser conotado como um pintor de sofisticada técnica e autor de
composições exuberantes. Utilizou de forma insistente a técnica swelling line (linha de inchaço, em
português), para assim conseguir o efeito tonal de distância. Para além disso,
também fez uso do dot and lazenge (ponto
e losango, em português).
[29] Pintor holandês
nascido em Delft (Delfos) em Outubro de 1632. Viveu até 1675 sempre com parcos
rendimentos vindos de um negócio de comércio de arte, mas nunca da venda dos
seus quadros.
[30] Em português
pontilhado. Consiste em colocar pastas de tinta mais espessa em áreas mais
escuras resultando em efeitos luminosos.
[31] Até então os
ricos eram vistos como fruto de uma ordem social ou divina.
[32] De novo a
analogia com a fotografia, no caso particular com o retrato.
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