sábado, 27 de abril de 2013

A cartografia e a pintura setencentista no norte da Europa


A ‘arte de pintar’ de Vermeer é uma das referencias quando o propósito é abordar a arte da cartografia em junção com pintura setecentista no Norte da Europa[1]. Nesta obra surge um grande mapa que não passou despercebido aos historiadores de arte e que apresenta indícios de uma analogia entre a cartografia (mapas) e pintura (no caso a holandesa).  Esta obra de Vermeer , que apresentamos na figura 1 do presente texto, é considerada a maior e mais complexa obra do autor e é também uma das suas preferidas, tal como prova a recusa da sua venda mesmo em tempos de crise do pintor. É uma pintura óptica com a capacidade de oferecer uma visão realista. Na cena representada, apesar dos vários motivos de interesse apresentados pela obra, interessa colocar o foco da nossa atenção no mapa que pendurado numa das paredes do atelier do pintor.

É o mapa da Holanda com as suas 17 províncias dos países baixos unidas, e apresenta um rasgão que divide o norte – a República holandesa – do sul – Habsburgo.
  O mapa na ‘arte de pintar’ é único e nele podem ser apreciados traços representantes da arte da cartografia. Nele,  percebe-se a representação da orla marítima holandesa, com um mar repleto de navios; as vistas topográficas das principais cidades holandesas, com um texto a explicar alguns pormenores e, para alem disso, combina 4 tipos de impressão disponíveis para mapas (gravação, água-forte, xilogravura e móvel para as letras).

               
        
Fig. 1 –A arte de pintar. Vermeer
           
A relação de Vermeer com a cartografia não se esgotou na obra que aqui apresentámos. Apesar do inferior detalhe e importância, foram outros os mapas representados por este artista: “Vermeer sempre sugere a qualidade material do papel envernizado, pintado, e algo dos meios gráficos pelos quais a massa da terra é apresentada” (Alpers, 1999: 4)[2].
A pintura setecentista do norte da Europa tem como origem a cidade de Bruges e tratava, principalmente, de temas da contemporaneidade, com uma forte componente descritiva através da valorização do detalhe e do pormenor. Os pintores holandeses queriam colocar nas suas obras a maior informação possível, o maior conhecimento possível, e a par deles a mesma ambição era tida pelos ‘autores de mapas’, que eram chamados de ‘descritores do mundo’. A janela italiana que o quattrocenti deu a conhecer ao mundo dá lugar a uma superfície onde era pretendido montar e construir  o mundo.
A cartografia inspirou imagens como as vistas topográficas (ver exemplo da figura 2), apesar do hábito em chamar a essas imagens pinturas, e por estarem bem definidas as fronteiras de mapa e de pinturas: “os mapas fornecem a medida de um lugar e a relação entre lugares, dados quantificáveis, enquanto as pinturas de paisagem são evocativas e visam antes a dar-nos certa qualidade de um lugar ou da percepção que o observador tem dele” (Alpers, 1999: 8). Com esta afirmação compreende-se também um base bem definida de separação entre a arte e ciência.
De volta à figura 2, que também é uma obra de Veermer,  o pintor holandês mostra-nos a luz natural de um determinado momento do dia. Para tal, faz uma divisão da obra em quatro bandas horizontais: o areal, a água (do rio Schie), os edifícios da cidade e o céu. No areal algumas pessoas: duas mulheres a caminharem, dois homens e uma mulher à conversa e uma mulher com uma criança no colo. Na água, alguns barcos e o reflexo dos edifícios que, por sua vez, ocupam uma outra das bandas horizontais. Sobre o reflexo na água é provável que Vermeer tenha utilizado uma câmara escura e conseguido a realização do reflexo através da técnica de pointillist[3]. Os edifícios, dos quais se destacam as portas de Schiedam e de Roterdão e as torres do que então eram a nova e a velha igreja, apresentam diferentes tonalidades por causa do que está a acontecer no céu (porta de entrada da luz), alguns telhados e cúpulas têm uma cor mais viva. A última banda é a que ocupa mais espaço da obra e oferece-nos uma sensação de continuidade espacial. O azul do céu e as nuvens brancas é interrompido pelas nuvens escuras que surpreendem e tão bem caracterizam o clima holandês. O local de vista é um local mais elevado que a linha de terra. O pintor não está ao nível nem do areal nem da cidade mas coloca-se num ponto mais alto.  Impõem-se esta análise da obra para que se possa perceber que o objectivo os artista é descrever e por isso tanto interesse para com o pormenor. É o realismo flamengo com descrições que quase se assemelham a fotografias sobre a decoração, usos e funções dos objectos. Verifica-se uma análise meticulosa e detalhada da realidade com um foco particular no espaço empírico que a forma. A pintura flamenga descreve a riqueza do visível e empírico onde tudo merece ser representado e ganha um significado simbólico.
                  

Fig. 2 –A Vista de Delfos. JohannesVermeer

Tal como o referido anteriormente, já não é a janela que se abre e deixa olhar, mas uma descrição que realça a atenção para com os detalhes e a superfície dos objectos que é apresentada na tela, “…não era uma janela, segundo o modelo italiano, mas sim, como um mapa, uma superfície sobre a qual se faz uma montagem do mundo” (Alpers, 1999: 7) – um mundo de objectos com a sua colocação no espaço visual. A pintura cartográfica fez nascer um espaço pictórico laicizado e científico onde se verifica uma ruptura com o espaço da perspectiva. Há uma maior atenção em descrever do que em explicar, o olhar deixa de efectuar a leitura de uma narrativa e passa a assistir a algo descrito, “Northern art, in contrast, suppresses narrative and textual reference in favour of description and visual surface” (Jay, 1980:12). O Presente deixa de narrar e no seu lugar surge um passado que quer ter influência na forma de se ver o presente e o futuro, “um modo de ver o mundo, em última análise determinado pelas novas atitudes perante a prosperidade e as relações de troca” (Berger: 1996: 91). Mas as fronteiras entre mapas e arte, ou entre conhecimento e decoração, seriam intrigantes para os holandeses do séc. XVI e XVII, “pois numa época em que os mapas eram considerados um tipo de pintura, e em que as pinturas desafiavam os textos como uma maneira fundamental de compreender o mundo, a distinção não era nítida” (Alpers, 1999: 12).
Houve um incremento da ilustração geográfica no séc. XVI por força de operações militares, actos de comércio e gestão da água. A confiança na cartografia, considerada então como uma habilidade comum, era inabalável. A cartografia era um passatempo onde, por vezes, se expressavam os mais fundos sentimentos e servia de justificação para viagens de artistas setentrionais. A cartografia na arte traz consigo uma estrutura interpretativa da percepção dos espaços numa ligação à fixação, mas também ao movimento. Para a filosofa francesa Christine Buci-Glucksmann existe uma diferença entre a cartografia na arte e a cartografia da arte. Para melhor se perceber esta diferença, é necessário ter em conta dois importante aspectos. O primeiro é a existência de um trabalho artístico inerente ao termo cartografia e potenciador de um trabalho artístico intelectual onde se verifica um repensar do objecto artístico. O segundo aspecto, é a integração do espaço na compreensão e interpretação de um pensamento artístico. A mesma autora incorpora um termo novo relacionado com ícaro e o seu voo – um modelo teórico fixo no globo e no mapa.
A determinação de uma localização  em determinado espaço requer uma ‘negociação’ com as coordenadas: “is to negotiate it according to its spatial coordinates” (Thun-Hohenstein, 2009: 37). Os destinatários da arte devem de agir como exploradores e navegadores de um trabalho artístico discursivo de latitudes e longitudes.
Mas para se perceber esta ligação da cartografia com a pintura setecentista do norte da Europa, é necessário recuar ainda mais no tempo. Ptolomeu[4] invocou que a geografia está preocupada com a cabeça e a corografia[5] com aspectos individuais (ver figura 3). Mas este cientista foi ainda mais longe, associando as habilidades de um matemático à geografia, e as de um artista à corografia[6].
                

Fig. 3 – “Geographia” e “ Chorographia” em Petrus Apianus, Cosmographia, Paris, 1551,
Biblioteca da Universidade de Princeton.

O alcance cartográfico estendeu-se juntamente com o papel da pintura. Ptolomeu para identificar um ‘criador pictórico’ fez uso do termo graphikos, termo associado a palavras que terminam com a expressão grapho, tais como geografia, cartografia e topografia, e que em lugar-comum, quer dizer: escrever, registar ou desenhar.
Os homens da Renascença ao traduzirem os textos de Ptolomeu, utilizaram o termo pintura, num contexto de descrição.
O termo descrição estava associado a uma retórica verbal e foi esse poder verbal que os italianos tentaram colocar na pintura: “mas quando a palavra descrição é usada por geógrafos renascentistas, ela chama a atenção não para o poder das palavras, mas para o sentido em que as imagens são desenhadas ou inscritas como algo escrito. Ela chama a atenção, em suma, não para o poder persuasivo das palavras, mas para um modo de representação pictórico.” (Alpers, 1999: 23) . Na verdade, em Ptolomeu, o termo grapho tanto podia sugerir escrita como pintura.
O termo descriptio era utilizado para mapas mas também para a pintura que acompanhou esse interesse: “com a ajuda das palavras que se aplicavam aos mapas, podemos sugerir que as pinturas do Norte estavam relacionadas mais com a descrição gráfica do que com a persuasão retórica, o que sucedia com as pinturas na Itália.” (Alpers, 1999: 24) .
Apesar de tudo, é no Norte da Europa, e não na Itália, que se dá uma reconciliação entre mapas e pintura, bastando para isso perceber a tamanha produção dos pintores setentrionais de pinturas de vistas.
O contributo de Alberti, para além de vincular a pintura à visão, foi considerar a pintura não uma superfície como um mapa, mas como um plano que servia de janela e que suponha a existência de um ponto de observação. Por sua vez Ptolomeu deu instruções para a concepção de imagem a partir de um único ponto do olho, mas isso não terá haver com a pintura italiana, mas sim com o ponto de distância adoptado por artistas setentrionais.
A diferença de um e de outro está no seguinte: “enquanto a perspectiva albertiana posiciona um observador a certa distancia olhando através de uma janela emoldurada para um suposto mundo substituto, Ptolomeu e a perspectiva do ponto de distância concebiam a pintura como uma superfície de trabalho plana, não-emoldurada, sobre a qual se inscreve o mundo.” (Alpers, 1999: 27) . Há a demarcação de um território e é lá que está contido o olhar do observador Recuperamos o que já anteriormente escrevemos: A janela italiana que o quattrocenti deu a conhecer ao mundo deu lugar a uma superfície onde era pretendido montar e construir o mundo. O mapa é o modelo por cauda da superfície plana que com um olhar nómada recusa o respeito pelos limites do plano através da invasão do espaço. É a imagem que controla o observador criando uma ilusão de liberdade, quem sabe semelhante ao voo de um Ícaro (ver página 5) 
O artista sai do seu ateliê para pintar. Foi o que se passou com as primeiras imagens paisagísticas holandesas, em que se destaca Hendrick Goltzius (ver imagem 4). O artista liberta-se da sua mente e da sua imaginação como elemento exclusivo de emissão e “sai ao ar livre e tenta capturar a grande amplidão da planura holandesa – fazendas, cidades e torres de igreja, tudo marcado sobre essa grande extensão” (Alpers, 1999: 28-29). Na verdade estamos a falar de algo que já anteriormente fora feito pelos cartógrafos.

                  
               

Fig. 4 – Landscape with Farm. Hendrick Goltzius

As mais importantes obras da paisagem holandesa estão enraizadas em hábitos cartográficos[7] em que o artista conhece e aceita a superfície de trabalho, a superfície e a extensão são enfatizadas pelo volume e pela solidez, verifica-se a ausência de meios de enquadramento usuais e familiares, há uma vista geral (com um grau falacioso) e a ausência de um observador localizado.
A noção desenhar une a cartografia com as paisagens holandesas do século XVII. A noção de desenho em Itália fora exaltada a forma de arte – imaginação. Já Hoogstraten[8] coloca o desenho como algo ligado às letras, e como tal – descrição.
A cartografia chega à arte: “usada restritamente, a cartografia se refere a uma combinação de formato pictórico e interesse descritivo que revela uma conexão entre certas paisagens e vistas de cidade e as formas da geografia que descrevem o mundo em mapas e vistas topográficas. Usada amplamente, a cartografia caracteriza um impulso para registar ou descrever a terra em imagens que era compartilhado na época por agrimensores, artistas, impressores, e o público holandês em geral” (Alpers, 1999: 38).
As características geográficas da Holanda também não são inocentes por causa dessas características tornou-se um espaço particularmente apropriado para a cartografar. Também o sistema de propriedade das terras fazia com que não existisse desconfiança no levantamento topográfico. Havia a liberdade para cartografar[9].
A arte holandesa com as vistas topográficas sofre uma transformação. Os meios gráficos dão origem à pintura. A ‘vista de Delft’ que anteriormente descrevemos (figura 2) é um desses exemplos. Mas o interesse pela cidade já vem de trás com Civitates Orbis Terrarum,  de Braun e Hogenberg, que tinham como propósito proporcionar o prazer da viagem aos que ficavam em casa. Mapas e globos são ferramentas capazes de delinear uma função de orientação.
  Esta obra, publicada em 1572 e 1617, teve o objectivo de completar o atlas de Abrahan Ortelius, com o nome The Atrum Orbis Terrarum[10]. Em Civitates Orbis Terrarum, um conjunto de colaboradores coordenados Georg Braun[11] participaram com informações várias que permitiu a diversos desenhadores construírem ilustrações de vários locais como p.ex. da localidade de Cascais, em Portugal (figura 5).
     
Fig. 5 – Representação de Cascais in Civitates Orbis Terrarum

Dizia-se que era uma viagem sem interesse em negócios ou ganhos, mas puramente a bem do conhecimento. Por isso tanta atenção para com trajes, flora, fauna e inscrições que se colocavam junto das ilustrações da vistas
O interesse[12] pela cidade era acrescido do facto particular de um interesse pela cidade natal e por isso tantas cidades representadas por artistas oriundos das mesmas e livros patrocinados pelas cidades com várias ilustrações. Criou-se uma tradição na execução de estampas topográficas e houve uma transição do meio gráfico para a pintura, com alguns artistas setentrionais a serem chamados a ilustrarem mapas.
Nessa Holanda da época, a história, que era factual, dá lugar a uma história descritiva com superfícies com muita informação. A  pintura holandesa tem um fascínio pela descrição tal como acontece com os mapas.


Bibliografia:
Alpers, Svetlana (1983). The Art of describing: Dutch Art in the Seventeenth Century. Chicago. The University of Chicago Press
Berger, J. (1996). Modos de Ver. Lisboa: Edições 70.
Glucksmann, Chiristine Buci. (1996). L’œil Cartographique De L’Art. Paris. Galilee.
Janson, H.W. (1998). História da Arte. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian
Jay, Martin (1988). “Scopic Regimes of Modernity”, Vision and Visuality. Seattle: Bay Press, pp 3-23
King, I.W. (2007). Straightening our Perspective: The Logos of the Line. Sage
Levin, D.M. (1993). Introduction In Modernity and the hegemony of Visions. University of California press.
Pallasmaa, Juliano (2008). The eyes of the skin. West Sussex: Wiley and sons
Thun-Hohenstein, Felicitas (2009). From a cartographic Glance to Synchronistic Experiences. In Cartwright, W et al (Org.), Cartography and Art (pp. 35-41). Berlin. Springer.
Alpers, Svetlana (1999). A Arte de Descrever: A Arte Holandesa no Século XVII. São Paulo. Editora da Universidade de São Paulo.

Internet (consultas realizadas entre Fevereiro e Março)
http://www.essentialvermeer.com/cat_about/view.html
                http://www.lcc.gatech.edu/~broglio/1102/scopic_regimes.html
                                                                                                                JB - Abril de 2013




[1] No capítulo com o título ‘O Impulso Cartográfico na arte holandesa’ do livro ‘The Art of Describing’, a autora Svetlana Alpers aborda com insistência esta obra.
[2] O texto de Alpers de 1999 utilizado como elemento da bibliografia do presente trabalho não apresentava numeração de páginas por se tratar de um conjunto de copias do original. Optou-se por atribuir uma paginação às cópias utilizadas com início de numeração no início do capítulo ‘O Impulso Cartográfico na arte holandesa’.
[3] Em português pontilhado. Consiste em colocar pastas de tinta mais espessa em áreas mais escuras resultando em efeitos luminosos.
[4] Cientista grego que nasceu no Egipto no ano 90 d.C. Viveu em Alexandria, onde faleceu em 168 d.C., e tornou-se conhecido pelos seus trabalhos nas áreas da matemática, astrologia, astronomia, geografia e cartografia.
[5] Estudo geográfico de um país ou de uma de suas regiões.
[6] Por esta razão os mapas de Ptolomeu sempre estarem ligados às projecções matemáticas.
[7] Referência a obras de Van Goyen; Ruisdael, Koninck.
[8] Pintor holandês que nasceu em 1627.
[9] Ao contrário por exemplo do que se passava em Inglaterra.
[10] Obra editada em 1570.
[11] Cónego da catedral de Colónia.
[12] Por volta de 1590.

JB - Abril de 2013

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