A ‘arte de pintar’ de Vermeer é uma das
referencias quando o propósito é abordar a arte da cartografia em junção com
pintura setecentista no Norte da Europa[1].
Nesta obra surge um grande mapa que não passou despercebido aos historiadores
de arte e que apresenta indícios de uma analogia entre a cartografia (mapas) e
pintura (no caso a holandesa).
Esta obra de Vermeer , que apresentamos na figura 1 do presente texto, é
considerada a maior e mais complexa obra do autor e é também uma das suas
preferidas, tal como prova a recusa da sua venda mesmo em tempos de crise do
pintor. É uma pintura óptica com a capacidade de oferecer uma visão realista.
Na cena representada, apesar dos vários motivos de interesse apresentados pela
obra, interessa colocar o foco da nossa atenção no mapa que pendurado numa das
paredes do atelier do pintor.
É o mapa da Holanda com as suas 17 províncias dos
países baixos unidas, e apresenta um rasgão que divide o norte – a República
holandesa – do sul – Habsburgo.
O mapa na ‘arte de pintar’ é único e nele podem
ser apreciados traços representantes da arte da cartografia. Nele, percebe-se a representação da orla
marítima holandesa, com um mar repleto de navios; as vistas topográficas das
principais cidades holandesas, com um texto a explicar alguns pormenores e,
para alem disso, combina 4 tipos de impressão disponíveis para mapas (gravação,
água-forte, xilogravura e móvel para as letras).
Fig. 1 –A arte de pintar. Vermeer
A relação de
Vermeer com a cartografia não se esgotou na obra que aqui apresentámos. Apesar
do inferior detalhe e importância, foram outros os mapas representados por este
artista: “Vermeer sempre sugere a qualidade material do papel envernizado,
pintado, e algo dos meios gráficos pelos quais a massa da terra é apresentada”
(Alpers, 1999: 4)[2].
A pintura
setecentista do norte da Europa tem como origem a cidade de Bruges e tratava,
principalmente, de temas da contemporaneidade, com uma forte componente
descritiva através da valorização do detalhe e do pormenor. Os pintores holandeses queriam colocar nas suas obras a maior informação
possível, o maior conhecimento possível, e a par deles a mesma ambição era tida
pelos ‘autores de mapas’, que eram chamados de ‘descritores do mundo’. A janela
italiana que o quattrocenti deu a
conhecer ao mundo dá lugar a uma superfície onde era pretendido montar e
construir o mundo.
A
cartografia inspirou imagens como as vistas topográficas (ver exemplo da figura
2), apesar do hábito em chamar a essas imagens pinturas, e por estarem bem
definidas as fronteiras de mapa e de pinturas: “os mapas fornecem a medida de
um lugar e a relação entre lugares, dados quantificáveis, enquanto as pinturas
de paisagem são evocativas e visam antes a dar-nos certa qualidade de um lugar
ou da percepção que o observador tem dele” (Alpers, 1999: 8). Com esta
afirmação compreende-se também um base bem definida de separação entre a arte e
ciência.
De volta à
figura 2, que também é uma obra de Veermer, o pintor holandês mostra-nos a luz natural de um
determinado momento do dia. Para tal, faz uma divisão da obra em quatro bandas
horizontais: o areal, a água (do rio Schie), os edifícios da cidade e o céu. No
areal algumas pessoas: duas mulheres a caminharem, dois homens e uma mulher à
conversa e uma mulher com uma criança no colo. Na água, alguns barcos e o
reflexo dos edifícios que, por sua vez, ocupam uma outra das bandas
horizontais. Sobre o reflexo na água é provável que Vermeer tenha utilizado uma
câmara escura e conseguido a realização do reflexo através da técnica de pointillist[3].
Os edifícios, dos quais se destacam as portas
de Schiedam e de Roterdão e as torres do que então eram a nova e a velha
igreja, apresentam diferentes tonalidades por causa do que está a acontecer no
céu (porta de entrada da luz), alguns telhados e cúpulas têm uma cor mais viva.
A última banda é a que ocupa mais espaço da obra e oferece-nos uma sensação de
continuidade espacial. O azul do céu e as nuvens brancas é interrompido pelas
nuvens escuras que surpreendem e tão bem caracterizam o clima holandês. O local
de vista é um local mais elevado que a linha de terra. O pintor não está ao
nível nem do areal nem da cidade mas coloca-se num ponto mais alto. Impõem-se esta análise da obra
para que se possa perceber que o objectivo os artista é descrever e por isso
tanto interesse para com o pormenor. É o realismo flamengo com descrições que
quase se assemelham a fotografias sobre a decoração, usos e funções dos
objectos. Verifica-se uma análise meticulosa e detalhada da realidade com um
foco particular no espaço empírico que a forma. A pintura flamenga descreve a riqueza
do visível e empírico onde tudo merece ser representado e ganha um significado
simbólico.
Fig. 2 –A Vista de Delfos. JohannesVermeer
Tal como o
referido anteriormente, já não é a janela que se abre e deixa olhar, mas uma
descrição que realça a atenção para com os detalhes e a superfície dos objectos
que é apresentada na tela, “…não era uma janela, segundo o modelo italiano, mas
sim, como um mapa, uma superfície sobre a qual se faz uma montagem do mundo”
(Alpers, 1999: 7) – um mundo de objectos com a sua colocação no espaço visual. A
pintura cartográfica fez nascer um espaço pictórico laicizado e científico onde
se verifica uma ruptura com o espaço da perspectiva. Há uma maior atenção em
descrever do que em explicar, o olhar deixa de efectuar a leitura de uma
narrativa e passa a assistir a algo descrito, “Northern art, in
contrast, suppresses narrative and textual reference in favour of description
and visual surface” (Jay, 1980:12). O Presente deixa de narrar e no seu
lugar surge um passado que quer ter influência na forma de se ver o presente e
o futuro, “um modo de ver o mundo, em última análise determinado pelas novas
atitudes perante a prosperidade e as relações de troca” (Berger: 1996: 91). Mas as fronteiras entre mapas e arte, ou
entre conhecimento e decoração, seriam intrigantes para os holandeses do séc.
XVI e XVII, “pois numa época em que os mapas eram considerados um tipo de
pintura, e em que as pinturas desafiavam os textos como uma maneira fundamental
de compreender o mundo, a distinção não era nítida” (Alpers, 1999: 12).
Houve um
incremento da ilustração geográfica no séc. XVI por força de operações
militares, actos de comércio e gestão da água. A confiança na cartografia,
considerada então como uma habilidade comum, era inabalável. A cartografia era
um passatempo onde, por vezes, se expressavam os mais fundos sentimentos e
servia de justificação para viagens de artistas setentrionais. A cartografia na
arte traz consigo uma estrutura interpretativa da percepção dos espaços numa
ligação à fixação, mas também ao movimento. Para a filosofa francesa Christine
Buci-Glucksmann
existe uma diferença entre a cartografia na arte e a cartografia da arte. Para
melhor se perceber esta diferença, é necessário ter em conta dois importante
aspectos. O primeiro é a existência de um trabalho artístico inerente ao termo
cartografia e potenciador de um trabalho artístico intelectual onde se verifica
um repensar do objecto artístico. O segundo aspecto, é a integração do espaço
na compreensão e interpretação de um pensamento artístico. A mesma autora
incorpora um termo novo relacionado com ícaro e o seu voo – um modelo teórico
fixo no globo e no mapa.
A determinação de uma
localização em determinado espaço
requer uma ‘negociação’ com as coordenadas: “is to negotiate it according to its spatial coordinates” (Thun-Hohenstein, 2009: 37). Os destinatários da arte devem de agir
como exploradores e navegadores de um trabalho artístico discursivo de
latitudes e longitudes.
Mas para se
perceber esta ligação da cartografia com a pintura setecentista do norte da
Europa, é necessário recuar ainda mais no tempo. Ptolomeu[4]
invocou que a geografia está preocupada com a cabeça e a corografia[5]
com aspectos individuais (ver figura 3). Mas este cientista foi ainda mais
longe, associando as habilidades de
um matemático à geografia, e as de um artista à corografia[6].
Fig. 3 – “Geographia” e “ Chorographia” em Petrus Apianus, Cosmographia, Paris, 1551,
Biblioteca da Universidade de Princeton.
O alcance cartográfico
estendeu-se juntamente com o papel da pintura. Ptolomeu para identificar um
‘criador pictórico’ fez uso do termo graphikos,
termo associado a palavras que terminam com a expressão grapho, tais como geografia, cartografia e topografia, e que em
lugar-comum, quer dizer: escrever, registar ou desenhar.
Os homens da
Renascença ao traduzirem os textos de Ptolomeu, utilizaram o termo pintura, num contexto de descrição.
O termo descrição estava associado a uma retórica
verbal e foi esse poder verbal que os italianos tentaram colocar na pintura:
“mas quando a palavra descrição é usada por geógrafos renascentistas, ela chama
a atenção não para o poder das palavras, mas para o sentido em que as imagens
são desenhadas ou inscritas como algo escrito. Ela chama a atenção, em suma,
não para o poder persuasivo das palavras, mas para um modo de representação
pictórico.” (Alpers, 1999: 23) . Na verdade, em Ptolomeu, o termo grapho
tanto podia sugerir escrita como pintura.
O termo descriptio era utilizado para mapas mas
também para a pintura que acompanhou esse interesse: “com a ajuda das palavras
que se aplicavam aos mapas, podemos sugerir que as pinturas do Norte estavam
relacionadas mais com a descrição gráfica do que com a persuasão retórica, o
que sucedia com as pinturas na Itália.” (Alpers, 1999: 24) .
Apesar de
tudo, é no Norte da Europa, e não na Itália, que se dá uma reconciliação entre
mapas e pintura, bastando para isso perceber a tamanha produção dos pintores
setentrionais de pinturas de vistas.
O contributo
de Alberti, para além de vincular a pintura à visão, foi considerar a pintura
não uma superfície como um mapa, mas como um plano que servia de janela e que
suponha a existência de um ponto de observação. Por sua vez Ptolomeu deu
instruções para a concepção de imagem a partir de um único ponto do olho, mas
isso não terá haver com a pintura italiana, mas sim com o ponto de distância
adoptado por artistas setentrionais.
A diferença
de um e de outro está no seguinte: “enquanto a perspectiva albertiana posiciona
um observador a certa distancia olhando através de uma janela emoldurada para
um suposto mundo substituto, Ptolomeu e a perspectiva do ponto de distância
concebiam a pintura como uma superfície de trabalho plana, não-emoldurada,
sobre a qual se inscreve o mundo.” (Alpers, 1999: 27) . Há a demarcação de um território e é lá
que está contido o olhar do observador Recuperamos o que já anteriormente
escrevemos: A janela italiana que o quattrocenti
deu a conhecer ao mundo deu lugar a uma superfície onde era pretendido
montar e construir o mundo. O mapa é o modelo por cauda da superfície plana que
com um olhar nómada recusa o respeito pelos limites do plano através da invasão
do espaço. É a imagem que controla o observador criando uma ilusão de
liberdade, quem sabe semelhante ao voo de um Ícaro (ver página 5)
O artista sai do seu ateliê para pintar. Foi o que
se passou com as primeiras imagens paisagísticas holandesas, em que se destaca
Hendrick Goltzius (ver imagem 4). O artista liberta-se da sua mente e da sua
imaginação como elemento exclusivo de emissão e “sai ao ar livre e tenta
capturar a grande amplidão da planura holandesa – fazendas, cidades e torres de
igreja, tudo marcado sobre essa grande extensão” (Alpers, 1999: 28-29). Na verdade estamos a falar de algo que
já anteriormente fora feito pelos cartógrafos.
Fig. 4 – Landscape with Farm. Hendrick Goltzius
As
mais importantes obras da paisagem holandesa estão enraizadas em hábitos
cartográficos[7] em que o
artista conhece e aceita a superfície de trabalho, a superfície e a extensão
são enfatizadas pelo volume e pela solidez, verifica-se a ausência de meios de
enquadramento usuais e familiares, há uma vista geral (com um grau falacioso) e
a ausência de um observador localizado.
A noção
desenhar une a cartografia com as paisagens holandesas do século XVII. A noção
de desenho em Itália fora exaltada a forma de arte – imaginação. Já Hoogstraten[8]
coloca o desenho como algo ligado às letras, e como tal – descrição.
A
cartografia chega à arte: “usada restritamente, a cartografia se refere a uma
combinação de formato pictórico e interesse descritivo que revela uma conexão
entre certas paisagens e vistas de cidade e as formas da geografia que descrevem
o mundo em mapas e vistas topográficas. Usada amplamente, a cartografia
caracteriza um impulso para registar ou descrever a terra em imagens que era
compartilhado na época por agrimensores, artistas, impressores, e o público
holandês em geral” (Alpers, 1999: 38).
As
características geográficas da Holanda também não são inocentes por causa
dessas características tornou-se um espaço particularmente apropriado para a
cartografar. Também o sistema de propriedade das terras fazia com que não
existisse desconfiança no levantamento topográfico. Havia a liberdade para
cartografar[9].
A arte
holandesa com as vistas topográficas sofre uma transformação. Os meios gráficos
dão origem à pintura. A ‘vista de Delft’ que anteriormente descrevemos (figura
2) é um desses exemplos. Mas o interesse pela cidade já vem de trás com Civitates Orbis Terrarum, de Braun e Hogenberg, que tinham como
propósito proporcionar o prazer da viagem aos que ficavam em casa. Mapas e
globos são ferramentas capazes de delinear uma função de orientação.
Esta obra, publicada em 1572 e 1617, teve o
objectivo de completar o atlas de Abrahan Ortelius, com o nome The Atrum Orbis Terrarum[10].
Em Civitates Orbis Terrarum, um
conjunto de colaboradores coordenados Georg Braun[11]
participaram com informações várias que permitiu a diversos desenhadores construírem ilustrações de vários locais
como p.ex. da localidade de Cascais, em Portugal (figura 5).
Fig. 5 – Representação de Cascais in Civitates Orbis Terrarum
Dizia-se que era uma viagem sem interesse em
negócios ou ganhos, mas puramente a bem do conhecimento. Por isso tanta atenção
para com trajes, flora, fauna e inscrições que se colocavam junto das
ilustrações da vistas
O interesse[12]
pela cidade era acrescido do facto particular de um interesse pela cidade natal
e por isso tantas cidades representadas por artistas oriundos das mesmas e
livros patrocinados pelas cidades com várias ilustrações. Criou-se uma tradição
na execução de estampas topográficas e houve uma transição do meio gráfico para
a pintura, com alguns artistas setentrionais a serem chamados a ilustrarem
mapas.
Nessa Holanda da
época, a história, que era factual, dá lugar a uma história descritiva com
superfícies com muita informação. A
pintura holandesa tem um fascínio pela descrição tal como acontece com
os mapas.
Bibliografia:
Alpers,
Svetlana (1983). The Art of describing:
Dutch Art in the Seventeenth Century. Chicago. The University of Chicago
Press
Berger,
J. (1996). Modos de Ver. Lisboa: Edições 70.
Glucksmann,
Chiristine Buci. (1996). L’œil
Cartographique De L’Art. Paris. Galilee.
Janson,
H.W. (1998). História da Arte. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian
Jay,
Martin (1988). “Scopic Regimes of
Modernity”, Vision and Visuality. Seattle: Bay Press, pp 3-23
King,
I.W. (2007). Straightening our Perspective: The Logos of the Line. Sage
Levin,
D.M. (1993). Introduction In Modernity
and the hegemony of Visions. University of California press.
Pallasmaa,
Juliano (2008). The eyes of the skin. West Sussex: Wiley and sons
Thun-Hohenstein,
Felicitas (2009). From a cartographic Glance to Synchronistic Experiences. In
Cartwright, W et al (Org.), Cartography
and Art (pp. 35-41). Berlin. Springer.
Alpers,
Svetlana (1999). A Arte de Descrever: A Arte
Holandesa no Século XVII. São
Paulo. Editora da
Universidade de São Paulo.
Internet (consultas realizadas entre Fevereiro e Março)
http://www.essentialvermeer.com/cat_about/view.html
http://www.lcc.gatech.edu/~broglio/1102/scopic_regimes.html
JB - Abril de 2013
[1] No capítulo com o título ‘O Impulso Cartográfico na arte
holandesa’ do livro ‘The Art of Describing’, a autora Svetlana Alpers aborda com
insistência esta obra.
[2] O texto de Alpers de 1999 utilizado como elemento da
bibliografia do presente trabalho não apresentava numeração de páginas por se
tratar de um conjunto de copias do original. Optou-se por atribuir uma
paginação às cópias utilizadas com início de numeração no início do capítulo ‘O
Impulso Cartográfico na arte holandesa’.
[3] Em português pontilhado. Consiste em colocar pastas de tinta mais espessa
em áreas mais escuras resultando em efeitos luminosos.
[4] Cientista grego que nasceu no Egipto no ano 90 d.C.
Viveu em Alexandria, onde faleceu em 168 d.C., e tornou-se conhecido pelos seus
trabalhos nas áreas da matemática, astrologia, astronomia, geografia e
cartografia.
[7] Referência a obras de Van Goyen; Ruisdael, Koninck.
[9] Ao contrário por exemplo do que se passava em
Inglaterra.
[10] Obra editada em 1570.
[11] Cónego da catedral de Colónia.
JB - Abril de 2013
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