...The
impression of three-dimensional
solidity
became greater as the optic
axes of each eye diverges (Crary, 1988. 24).
Referenciada pela 1ª vez em 1838[1]
e inventada pelo professor Charles Wheatstone, a estereoscopia permite ver as
superfícies das imagens com profundidade, “[cria] um certo efeito de
profundidade; mas com este instrumento esse efeito é potenciado de forma a
produzir um efeito de realidade que ilude os nossos sentidos com a sua
aparência de verdade” (Holmes, 1859: 06).
A estereoscopia é uma forma de adequar uma imagem ao modo de
ver humano, com capacidade para
tornar as imagens mais próximas da realidade. Apesar de fazer uso das imagens
fotográficas, a sua invenção é precedente à fotografia e, tal como noutros
casos, o seu aparecimento originou uma reorganização do espaço e da mentalidade
do observador num contexto de adaptação à novidade que era o facto de não
apresentar imagens em movimento.
Na sua designação original, stereopsis,
há uma derivação das palavras gregas stereós,
que quer dizer sólido, e opsis, que
quer dizer visão. Assim, estamos a falar de um ver de uma forma encorpada, de
um ver sólido ou de uma visão compacta. De uma forma de tornar as imagens mais
próximas de uma realidade que penetra no interior do olhar. Os pilares
fundadores da estereoscopia estão no estudo da fisiologia ocular do século XIX,
particularmente nos conhecimentos obtidos sobre a disparidade binocular[2],
enquanto elemento sintetizador de uma imagem única .
Para além dos contributos iniciais de Charles Wheatstone, a história
da estereoscopia tem origem nos anos 20 e 30 do século XIX, devido aos
conhecimentos adquiridos sobre a
visão subjectiva e aos avanços da psicologia. Estes avanços criaram alicerces
para o desenvolvimento do pensamento sobre a ilusão óptica[3]
e a teoria da cor[4]. Para além
disso, a estereoscopia recebeu contributos vários como a construção em 1849 de uma
versão mais prática do estereoscópio, feita David Brewster (figura 1) ou o
aparecimento em França, em 1850, do primeiro produtor de fotografias[5]
para estereoscópios, Jules Duboscq.
Figura
1 – Estereoscópio construído por David Brewster
O impacto da estereoscopia junto do público foi de grande afirmação.
Para isso, contribuíram as grandes exposições mundiais de 1851, em Londres, e 4
anos depois em Paris[6]. Se
exceptuarmos a fotografia, a estereoscopia foi uma das mais significativa
formas de fixar imagens durante o século XIX.
A profundidade sentida através do olhar, é um treino apreendido não
só pela visão, mas também por outros sentidos. A sua percepção é uma educação e,
por isso, Rudolf
Arnheim (1960) fala da profundidade como uma habilidade humana capaz de
efectuar uma interpretação do mundo. A profundidade relaciona-se com o
espaço tridimensional e permite estimar com maior precisão a distância até um
determinado objecto. A percepção do espaço enquanto matéria de estudo originou
acesos debates: “Was space an innate form,
or was it something recognized through the learning of cues after birth?” (Crary,
1988. 24). A questão base era
perceber como ocorre a percepção sensorial na sua passagem de um domínio para
outro? Ou como podem os sentidos se reunir num acto de percepção? Molyneaux[7],
numa visão céptica e prudente, considerava, na resposta às questões anteriores,
o seguinte pensamento: na restituição da visão a um individuo cego, não se
verificava o reconhecimento de objectos por parte de quem nunca os tinha visto[8].
O caminho que se seguiu apoiou-se sempre numa insistência de crescimento da
ideia de relação entre a visão e um lado táctil dos sentidos. É impossível negar a capacidade de
identificar a solidez de um objecto com um só olho, mas é muito mais fácil, e
eficaz, fazê-lo com os dois olhos – que são dois pontos de vista separados
alguns centímetros entre eles – “Embora como vimos, os dois olhos vejam duas
imagens diferentes, nós vemos apenas uma imagem. Os dois caminham em conjunto e
reúnem-se num terceiro, que nos mostra tudo o que veríamos em cada um” (Holmes,
1859: 07). Isto é o que acontece na normalidade do olhar e da visão e na
comunicação com o sistema neuronal e cerebral. Dependendo de indivíduo para
indivíduo, os olhos estão separados entre eles entre 50 a 75 mm[9].
Cada olho tem uma visão daquilo que é visto. No mesmo espaço de visão, o olho
direito vê uma imagem, que vamos identificar como X1, e o olho esquerdo vê uma outra imagem, que identificamos por X2. Para perceber este ‘acontecimento’,
basta fazer o ‘curioso’ exercício de abrir e fechar os olhos alternadamente e sentir a disparidade binocular. Com este
exercício reparamos que os objectos situados à nossa frente parecem dar
pequenos saltos que alteram a sua posição. Na verdade quem salta é o observador porque através da alternância de olhar com um
olho ou outro, a posição do observador em relação ao objecto, altera-se. Com
este exercício, o observador vê alternadamente aquilo que parece ser a mesma
imagem com um olho e com outro. Em resultado, ora vê a imagem x1, ora vê a imagem x2.
A linha de visão dos olhos, fixa um ponto no espaço. Esse ponto
projecta uma determinada localização na retina dos dois olhos. A visão
binocular é definida pela diferença entre o ponto de projecção nos dois olhos –
ângulo de visão. A figura 2 representa a visão binocular.
Figura 2 – Visão binocular
A
disparidade binocular era conhecida desde a antiguidade. Nos anos 30 do século
XIX, tornou-se um conhecimento crucial para novos desenvolvimentos ma área. O propósito dos investigadores era:
“given that an observer perceives with each eye a different image, how are they
experienced as a single or unitary” (Crary, 1988. 25). O seu
trabalho tinha duas possíveis respostas: i) nunca se vê nada excepto com um
olho de cada vez; ii) com base no trabalho de Kepler, cada olho projecta um
objecto contextualizado na sua actual localização.
A visão humana percebe todas as dimensões de um objecto e não apenas
a sua superfície. Na visão subjectiva, que apenas é experenciável através das
condições de percepção, está o princípio do instrumento que é a estereoscopia,
que assenta num princípio de disparidade binocular, i.e. dá-se a criação de uma
percepção de profundidade sempre que um determinado objecto ou paisagem é vista
por ambos os olhos através de uma visão binocular normal. Os fisiologistas dos
anos 20 do século XIX, descobriram uma zona por de trás dos olhos com fibras
nervosas da retina com ligação ao cérebro e com a função de transportar a
informação e cruzando com os dois lados do cérebro. Os avanços destes estudos
concluíram que a disparidade retinal produz uma só imagem: “the human organism, he claimed, had the capacity under
most conditions to synthesize retinal disparity into a single unitary image”
(Crary, 1988. 27).
De uma forma muito simples, o sistema aqui apresentado pode ser
explicado da seguinte forma:
1º. Uma imagem, como se fosse
a visão do olho direito, é vista pelo olho direito;
2ª. Igual ao ponto anterior
mas para o olho esquerdo;
3º. Junção das duas imagens.
As pesquisas de Wheatstone foram as mais importantes para se obter
esta informação: “His research concerned the
visual experience of objects relatively close to the eye” (Crary,
1988. 27). Quando os objectos a observar estão mais próximos dos olhos, os
valores dos ângulos dos eixos ópticos tornam maior a definição, do que em
objectos a longa distancia da visão. Os ângulos dos eixos ópticos são assim
diferentes, de acordo com a localização do objecto em relação à posição do
observador: “When an object is viewed at so
Great a distance that the optic axes of both eyes are sensibly parallel when
directed toward it, the perspective projections of it, seen by each eye
separately, and the appearance to the two eyes is precisely the same as when
the object is seen by one eye only” (Charles
Wheatstone, "Contributions to the Physiology of Vision" in Crary, 1988: 27). Assim, a proximidade física traz a reconciliação da
disparidade binocular ao fazer que duas visões passem a uma única.
Este principio pode ser descrito por um artista, quando pinta ou
desenha determinado objecto de visão e depois repete a pintura ou desenho, alguns centímetros ao lado (poucos, os
suficientes para simular a distância entre os olhos). O ideal é
“quando as duas imagens são tiradas ao mesmo tempo com uma câmara dupla”
(Holmes, 1859: 07). A figura 3 é um exemplo de Câmara dupla dos anos 80, que em
primeira análise é um corpo com duas máquinas fotográficas com a capacidade de dispararem no mesmo instante.
Figura
3 – Exemplo de câmara dupla (anos 80)
Impõe-se uma pergunta: como fundir as duas imagens que por serem
gémeas são chamadas de estereografias? Ou, como passar a ter apenas uma
imagem?. Resposta, com um aumentador estrábico[10],
que é um par de lentes com a capacidade de trocar os olhos por nós, “se for
colocado de modo a que: com a sua metade direita nós vejamos a parte direita do
diapositivo, e com a parte esquerda a parte esquerda do diapositivo, ele
aproxima-as para o interior de modo a que elas caminhem juntas para formar uma
única imagem” (Holmes, 1859: 08).
No caso do estereoscópio criado por Wheatstone[11],
o observador colocava os olhos directamente em frente a dois espelhos planos e
definidos a 90 graus um do outro. As imagens a ver eram colocadas em suportes
no lado contrário ao observador. Existia uma completa separação espacial das
duas imagens e da visão dos dois olhos, “made clear the atopic nature of the perceived stereoscopic image, the
disjunction between experience and its cause” (Crary, 1988. 31). A figura 4 descreve o estereoscópio
criado por Wheatstone.
Figura
4 – O estereoscópio criado por Wheatstone
Poder-se-ão, assim, ver as formas e provocar uma sensibilidade única
que a pintura não consegue passar ou transmitir: “os afiados esqueléticos braços
de árvore ao fundo chegam até nós como se nos arranhassem os olhos” (Holmes,
1859: 08). À frente do observador estende-se uma realidade. A ilusão óptica
cria uma ambiência extravagante e artificial que transporta o observador para um outro espaço, para uma outra
dimensão.
Hoje em dia as imagens estão cada vez mais
perfeitas na capacidade de recriar experiências e de permitir a viajar no
espaço e no tempo. Os perigos que acarretam algumas imagens são definidos por Anne McCauley na possibilidade confundir as habilidades humanas
como um inferior trabalho de Deus[12]; no perigo de confundir o ícone
com o seu desconhecido referente e no perigo do desejo de pensar que o ilusório
é real.
Há vida na estereografia. Uma vida vista pelos movimentos de uma imagem
para a outra e, também, pelas marcas deixadas. O realismo
da estereoscopia cria uma maior percepção das diferenças: “the relation of the observer to the objects is no tone of identify
but an experience of disjunct or divergent images” (Crary, 1988. 27).
Da mesma forma que a natureza reflecte Deus, na estereoscopia observa-se um
real que é imaginação e ingenuidade.
O objecto representado surge perto do observador e torna-se tangível. Há um
lado didáctica, uma oportunidade para viver os tesouros – Uma arte democrática.
A fotografia Estereoscópica é um dos patamares máximos para perceber
o conflito entra a ânsia popular de emoções visuais e a condenação desses
desejos. Há um apelo à sedução para com o outro lado dos objectos que encoraja
a ociosidade.
Há uma percepção sensorial que não depende exclusivamente do mundo
exterior, mas também do próprio corpo i.e. o funcionamento do aparelho óptico
interfere na compreensão dos fenómenos por ausência de uma neutralidade óptica
– o que é visto não depende exclusivamente dos objectos.
Existe
relutância em colocar a estereoscopia como elemento da história da fotografia.
Os argumentos são o facto das estereoscopias não reproduzirem com rigor a
experiência perceptiva da estereoscopia nos livros sobre a história da
fotografia e pela experiência imersiva ser mais apelativa para a história do
cinema. Para além disso, há exigências necessárias para a exposição de
estereografias em museus.
Até
os grandes defensores da estereoscopia lhe apontam falhas. Por exemplo, Oliver
Wendell Holmes[13] aponta a falta de cor e movimento, acrescentando,
também, uma capacidade de hipnotismo aludindo-se a comparações com algumas
experiências desenvolvidas por
James Braid[14]. A fixação
do olhar com capacidade de levar à perda do racional do observador.
Apesar de alguns considerarem arte, estas imagens foram
classificadas como entretenimento (cf. nota de rodapé 6) e alvo de vários ataques, até por parte de governos: “mindless entertainment, dangerous distractions from
work and political action, and breeders of false consciousness and unrealistic
social aspirations” (McCauley, 2000: 27).
A visualização destas imagens estava associada à ideia de voyeur, por necessitar de interacção com
o aparelho. Um espreitar e um ver sem ser visto que permitia entrar nos espaços
sem entrar fisicamente. Por parte do observador, podiam ser sentidas presenças
que não existiam verdadeiramente e que permitiam experiências sem possibilidade de qualquer tipo de
denúncia.
O potencial erótico destas imagens criou um espaço de desejo no
observador. O efeito de realidade que estas imagens transmitiam era acompanhado
por uma obscenidade entre o observador e o objecto. A realidade das imagens provocavam
uma excitação sexual, um desejo criado pela sensação de realidade.
A
fotografia derrotou a estereoscopia. As instituições científicas e os poderes
públicos exigiam imagens com uma percepção mais estável sobre a realidade
social. A estereoscopia não se conseguiu impor. A fotografia ganhou espaço por
que recria e perpetua.
Bibliografia:
Arnheim,
Rudolf. Arte e percepção visual (1960). [S.l.]: Pioneira, 2005. p.
236
CRARY,
Jonathan. (1988) “Techniques of the Observer”, Jstor, Vol. 45, pp. 3-35.
Holmes, Oliver Wendell (1859). “A estereoscopia a estereografia” in Revista de
Comunicação e Linguagens nº39 Fotografia(s), Lisboa, Relógio d’Água,
2008
McCauley, Anne (2000). “Realism and its detractors.”
In Paris in 3D. From Stereoscopy to Virtual Reality 1850-2000, edited by
Françoise Reynaud, Catherine Tambrun and KIM Timby, 23-29. Paris: Musée
Carnavalet, Museum of the History of Paris, 2000.
[1] Um ano depois de Daguèrre ter dado a conhecer a sua invenção e de
Talbot ter apresentado à Royal Society o método de obter imagens em papel pela
acção da luz.
[2] Ver explicação na continuação do presente texto.
[3] Ilusão óptica – São as ilusões que ‘enganam’ o sistema visual humano e
que fazem o observador ver algo não presente ou erróneo. Estas ilusões podem
ser de carácter cognitivo ou fisiológico.
[4] A cor é a forma como o olho interpreta a reemissão da luz imanada de
um objecto. Esta reemissão é emitida por uma fonte luminosa por meio de ondas
electromagnéticas.
[5] Fotografias em daguerreótipos, vidro e papel.
[6] Nestas exposições a estereoscopia estava no mesmo patamar que o
panorama e o peep-show. Puro
entretenimento.
[7] Filósofo naturalista irlandês que nasceu em Dublin, em 1656.
[8] Outros autores respondiam na mesma direcção
de pensamento: Locke, Berkeley, Diderot, Reid e Condillac.
[9] Distância interpupilar.
[10] Artesanalmente é cortar ao meio uma lente convexa, alisar as curvas
até ficarem direitas e juntá-las.
[11] Na comparação, os modelos posteriores faziam o observador acreditar
que estava a olhar para a frente – para algo que se exteriorizava. O modelo de
Wheatstone não disfarçava a experiência.
[12] Por dificuldade na tradução, apresenta-se o original em inglês: “the danger of mistaking inferior human
craftsmanship for the work of God”.
[13] É um entusiasta da estereografia. Foi professor na escola médica de
Harvard, escritor, fotografo amador e dono de uma espectacular colecção de
estereografias. Nasceu em Cambridge, em 1809.
[14] Médico cirurgião escocês nascido em 1795. Foi um dos
pioneiros cientistas modernos a trabalhar com o estado hipnótico e com a sua
indução. É considerado o iniciador da hipnose científica.