domingo, 28 de abril de 2013

A Estereoscopia



...The impression of three-dimensional
solidity became greater as the optic
 axes of each eye diverges (Crary, 1988. 24).


Referenciada pela 1ª vez em 1838[1] e inventada pelo professor Charles Wheatstone, a estereoscopia permite ver as superfícies das imagens com profundidade, “[cria] um certo efeito de profundidade; mas com este instrumento esse efeito é potenciado de forma a produzir um efeito de realidade que ilude os nossos sentidos com a sua aparência de verdade” (Holmes, 1859: 06).
A estereoscopia é uma forma de adequar uma imagem ao modo de ver  humano, com capacidade para tornar as imagens mais próximas da realidade. Apesar de fazer uso das imagens fotográficas, a sua invenção é precedente à fotografia e, tal como noutros casos, o seu aparecimento originou uma reorganização do espaço e da mentalidade do observador num contexto de adaptação à novidade que era o facto de não apresentar imagens em movimento.
Na sua designação original, stereopsis, há uma derivação das palavras gregas stereós, que quer dizer sólido, e opsis, que quer dizer visão. Assim, estamos a falar de um ver de uma forma encorpada, de um ver sólido ou de uma visão compacta. De uma forma de tornar as imagens mais próximas de uma realidade que penetra no interior do olhar. Os pilares fundadores da estereoscopia estão no estudo da fisiologia ocular do século XIX, particularmente nos conhecimentos obtidos sobre a disparidade binocular[2], enquanto elemento sintetizador de uma imagem única .
Para além dos contributos iniciais de Charles Wheatstone, a história da estereoscopia tem origem nos anos 20 e 30 do século XIX, devido aos conhecimentos adquiridos sobre  a visão subjectiva e aos avanços da psicologia. Estes avanços criaram alicerces para o desenvolvimento do pensamento sobre a ilusão óptica[3] e a teoria da cor[4]. Para além disso, a estereoscopia recebeu contributos vários como a construção em 1849 de uma versão mais prática do estereoscópio, feita David Brewster (figura 1) ou o aparecimento em França, em 1850, do primeiro produtor de fotografias[5] para estereoscópios, Jules Duboscq.

Figura 1 – Estereoscópio construído por David Brewster

O impacto da estereoscopia junto do público foi de grande afirmação. Para isso, contribuíram as grandes exposições mundiais de 1851, em Londres, e 4 anos depois em Paris[6]. Se exceptuarmos a fotografia, a estereoscopia foi uma das mais significativa formas de fixar imagens durante o século XIX.
A profundidade sentida através do olhar, é um treino apreendido não só pela visão, mas também por outros sentidos. A sua percepção é uma educação e, por isso, Rudolf Arnheim (1960) fala da profundidade como uma habilidade humana capaz de efectuar uma interpretação do mundo. A profundidade relaciona-se com o espaço tridimensional e permite estimar com maior precisão a distância até um determinado objecto. A percepção do espaço enquanto matéria de estudo originou acesos debates: “Was space an innate form, or was it something recognized through the learning of cues after birth?” (Crary, 1988. 24).  A questão base era perceber como ocorre a percepção sensorial na sua passagem de um domínio para outro? Ou como podem os sentidos se reunir num acto de percepção? Molyneaux[7], numa visão céptica e prudente, considerava, na resposta às questões anteriores, o seguinte pensamento: na restituição da visão a um individuo cego, não se verificava o reconhecimento de objectos por parte de quem nunca os tinha visto[8]. O caminho que se seguiu apoiou-se sempre numa insistência de crescimento da ideia de relação entre a visão e um lado táctil dos sentidos.  É impossível negar a capacidade de identificar a solidez de um objecto com um só olho, mas é muito mais fácil, e eficaz, fazê-lo com os dois olhos – que são dois pontos de vista separados alguns centímetros entre eles – “Embora como vimos, os dois olhos vejam duas imagens diferentes, nós vemos apenas uma imagem. Os dois caminham em conjunto e reúnem-se num terceiro, que nos mostra tudo o que veríamos em cada um” (Holmes, 1859: 07). Isto é o que acontece na normalidade do olhar e da visão e na comunicação com o sistema neuronal e cerebral. Dependendo de indivíduo para indivíduo, os olhos estão separados entre eles entre 50 a 75 mm[9]. Cada olho tem uma visão daquilo que é visto. No mesmo espaço de visão, o olho direito vê uma imagem, que vamos identificar como X1, e o olho esquerdo vê uma outra imagem, que identificamos por X2. Para perceber este ‘acontecimento’, basta fazer o ‘curioso’ exercício de abrir e fechar os olhos alternadamente e sentir a disparidade binocular. Com este exercício reparamos que os objectos situados à nossa frente parecem dar pequenos saltos que alteram a sua posição. Na verdade quem salta é o observador porque através da alternância de olhar com um olho ou outro, a posição do observador em relação ao objecto, altera-se. Com este exercício, o observador vê alternadamente aquilo que parece ser a mesma imagem com um olho e com outro. Em resultado, ora vê a imagem x1, ora vê a imagem x2.
A linha de visão dos olhos, fixa um ponto no espaço. Esse ponto projecta uma determinada localização na retina dos dois olhos. A visão binocular é definida pela diferença entre o ponto de projecção nos dois olhos – ângulo de visão. A figura 2 representa a visão binocular.

Figura 2 – Visão binocular

A disparidade binocular era conhecida desde a antiguidade. Nos anos 30 do século XIX, tornou-se um conhecimento crucial para novos desenvolvimentos ma área. O propósito dos investigadores era: “given that an observer perceives with each eye a different image, how are they experienced as a single or unitary” (Crary, 1988. 25). O seu trabalho tinha duas possíveis respostas: i) nunca se vê nada excepto com um olho de cada vez; ii) com base no trabalho de Kepler, cada olho projecta um objecto contextualizado na sua actual localização.
A visão humana percebe todas as dimensões de um objecto e não apenas a sua superfície. Na visão subjectiva, que apenas é experenciável através das condições de percepção, está o princípio do instrumento que é a estereoscopia, que assenta num princípio de disparidade binocular, i.e. dá-se a criação de uma percepção de profundidade sempre que um determinado objecto ou paisagem é vista por ambos os olhos através de uma visão binocular normal. Os fisiologistas dos anos 20 do século XIX, descobriram uma zona por de trás dos olhos com fibras nervosas da retina com ligação ao cérebro e com a função de transportar a informação e cruzando com os dois lados do cérebro. Os avanços destes estudos concluíram que a disparidade retinal produz uma só imagem: “the human organism, he claimed, had the capacity under most conditions to synthesize retinal disparity into a single unitary image” (Crary, 1988. 27).
De uma forma muito simples, o sistema aqui apresentado pode ser explicado da seguinte forma:
1º. Uma imagem, como se fosse a visão do olho direito, é vista pelo olho direito;
2ª. Igual ao ponto anterior mas para o olho esquerdo;
3º. Junção das duas imagens.
As pesquisas de Wheatstone foram as mais importantes para se obter esta informação: “His research concerned the visual experience of objects relatively close to the eye” (Crary, 1988. 27). Quando os objectos a observar estão mais próximos dos olhos, os valores dos ângulos dos eixos ópticos tornam maior a definição, do que em objectos a longa distancia da visão. Os ângulos dos eixos ópticos são assim diferentes, de acordo com a localização do objecto em relação à posição do observador: “When an object is viewed at so Great a distance that the optic axes of both eyes are sensibly parallel when directed toward it, the perspective projections of it, seen by each eye separately, and the appearance to the two eyes is precisely the same as when the object is seen by one eye only” (Charles Wheatstone, "Contributions to the Physiology of Vision" in Crary, 1988: 27). Assim, a proximidade física traz a reconciliação da disparidade binocular ao fazer que duas visões passem a uma única.
Este principio pode ser descrito por um artista, quando pinta ou desenha determinado objecto de visão e depois repete a pintura ou desenho, alguns centímetros ao lado (poucos, os suficientes para simular a distância entre os olhos).  O  ideal é “quando as duas imagens são tiradas ao mesmo tempo com uma câmara dupla” (Holmes, 1859: 07). A figura 3 é um exemplo de Câmara dupla dos anos 80, que em primeira análise é um corpo com duas máquinas fotográficas com a capacidade de dispararem no mesmo instante.
Figura 3 – Exemplo de câmara dupla (anos 80)


Impõe-se uma pergunta: como fundir as duas imagens que por serem gémeas são chamadas de estereografias? Ou, como passar a ter apenas uma imagem?. Resposta, com um aumentador estrábico[10], que é um par de lentes com a capacidade de trocar os olhos por nós, “se for colocado de modo a que: com a sua metade direita nós vejamos a parte direita do diapositivo, e com a parte esquerda a parte esquerda do diapositivo, ele aproxima-as para o interior de modo a que elas caminhem juntas para formar uma única imagem” (Holmes, 1859: 08).
No caso do estereoscópio criado por Wheatstone[11], o observador colocava os olhos directamente em frente a dois espelhos planos e definidos a 90 graus um do outro. As imagens a ver eram colocadas em suportes no lado contrário ao observador. Existia uma completa separação espacial das duas imagens e da visão dos dois olhos, “made clear the atopic nature of the perceived stereoscopic image, the disjunction between experience and its cause” (Crary, 1988. 31).  A figura 4 descreve o estereoscópio criado por Wheatstone.

Figura 4 – O estereoscópio criado por Wheatstone


Poder-se-ão, assim, ver as formas e provocar uma sensibilidade única que a pintura não consegue passar ou transmitir: “os afiados esqueléticos braços de árvore ao fundo chegam até nós como se nos arranhassem os olhos” (Holmes, 1859: 08). À frente do observador estende-se uma realidade. A ilusão óptica cria uma ambiência extravagante e artificial que  transporta o observador para um outro espaço, para uma outra dimensão.
Hoje em dia as imagens estão cada vez mais perfeitas na capacidade de recriar experiências e de permitir a viajar no espaço e no tempo. Os perigos que acarretam algumas imagens são definidos por Anne McCauley na possibilidade confundir as habilidades humanas como um inferior trabalho de Deus[12]; no perigo de confundir o ícone com o seu desconhecido referente e no perigo do desejo de pensar que o ilusório é real.
Há vida na estereografia. Uma vida vista pelos movimentos de uma imagem para a outra e, também, pelas marcas deixadas. O realismo da estereoscopia cria uma maior percepção das diferenças: “the relation of the observer to the objects is no tone of identify but an experience of disjunct or divergent images” (Crary, 1988. 27). Da mesma forma que a natureza reflecte Deus, na estereoscopia observa-se um real que é  imaginação e ingenuidade. O objecto representado surge perto do observador e torna-se tangível. Há um lado didáctica, uma oportunidade para viver os tesouros – Uma arte democrática.  
A fotografia Estereoscópica é um dos patamares máximos para perceber o conflito entra a ânsia popular de emoções visuais e a condenação desses desejos. Há um apelo à sedução para com o outro lado dos objectos que encoraja a ociosidade.
Há uma percepção sensorial que não depende exclusivamente do mundo exterior, mas também do próprio corpo i.e. o funcionamento do aparelho óptico interfere na compreensão dos fenómenos por ausência de uma neutralidade óptica – o que é visto não depende exclusivamente dos objectos.
Existe relutância em colocar a estereoscopia como elemento da história da fotografia. Os argumentos são o facto das estereoscopias não reproduzirem com rigor a experiência perceptiva da estereoscopia nos livros sobre a história da fotografia e pela experiência imersiva ser mais apelativa para a história do cinema. Para além disso, há exigências necessárias para a exposição de estereografias em museus.
Até os grandes defensores da estereoscopia lhe apontam falhas. Por exemplo, Oliver Wendell Holmes[13] aponta a  falta de cor e movimento, acrescentando, também, uma capacidade de hipnotismo aludindo-se a comparações com algumas experiências desenvolvidas por  James Braid[14]. A fixação do olhar com capacidade de levar à perda do racional do observador.
Apesar de alguns considerarem arte, estas imagens foram classificadas como entretenimento (cf. nota de rodapé 6) e alvo de vários  ataques, até por parte de governos: “mindless entertainment, dangerous distractions from work and political action, and breeders of false consciousness and unrealistic social aspirations” (McCauley, 2000: 27).
A visualização destas imagens estava associada à ideia de voyeur, por necessitar de interacção com o aparelho. Um espreitar e um ver sem ser visto que permitia entrar nos espaços sem entrar fisicamente. Por parte do observador, podiam ser sentidas presenças que não existiam verdadeiramente e que permitiam experiências sem  possibilidade de qualquer tipo de denúncia.
O potencial erótico destas imagens criou um espaço de desejo no observador. O efeito de realidade que estas imagens transmitiam era acompanhado por uma obscenidade entre o observador e o objecto. A realidade das imagens provocavam uma excitação sexual, um desejo criado pela sensação de realidade.
A fotografia derrotou a estereoscopia. As instituições científicas e os poderes públicos exigiam imagens com uma percepção mais estável sobre a realidade social. A estereoscopia não se conseguiu impor. A fotografia ganhou espaço por que recria e perpetua.
Bibliografia:
Arnheim, Rudolf. Arte e percepção visual (1960). [S.l.]: Pioneira, 2005. p. 236
CRARY, Jonathan. (1988) “Techniques of the Observer”, Jstor, Vol. 45, pp. 3-35.
Holmes, Oliver Wendell (1859). “A estereoscopia a estereografia” in Revista de Comunicação e Linguagens nº39 Fotografia(s), Lisboa, Relógio d’Água, 2008
McCauley, Anne (2000). “Realism and its detractors.” In Paris in 3D. From Stereoscopy to Virtual Reality 1850-2000, edited by Françoise Reynaud, Catherine Tambrun and KIM Timby, 23-29. Paris: Musée Carnavalet, Museum of the History of Paris, 2000.




[1] Um ano depois de Daguèrre ter dado a conhecer a sua invenção e de Talbot ter apresentado à Royal Society o método de obter imagens em papel pela acção da luz.
[2] Ver explicação na continuação do presente texto.
[3] Ilusão óptica – São as ilusões que ‘enganam’ o sistema visual humano e que fazem o observador ver algo não presente ou erróneo. Estas ilusões podem ser de carácter cognitivo ou fisiológico.
[4] A cor é a forma como o olho interpreta a reemissão da luz imanada de um objecto. Esta reemissão é emitida por uma fonte luminosa por meio de ondas electromagnéticas.
[5] Fotografias em daguerreótipos, vidro e papel.
[6] Nestas exposições a estereoscopia estava no mesmo patamar que o panorama e o peep-show. Puro entretenimento.
[7] Filósofo naturalista irlandês que nasceu em Dublin, em 1656.
[8] Outros autores respondiam na mesma direcção de pensamento: Locke, Berkeley, Diderot, Reid e Condillac.
[9] Distância interpupilar.
[10] Artesanalmente é cortar ao meio uma lente convexa, alisar as curvas até ficarem direitas e juntá-las.
[11] Na comparação, os modelos posteriores faziam o observador acreditar que estava a olhar para a frente – para algo que se exteriorizava. O modelo de Wheatstone não disfarçava a experiência.
[12] Por dificuldade na tradução, apresenta-se o original em inglês: “the danger of mistaking inferior human craftsmanship for the work of God”.
[13] É um entusiasta da estereografia. Foi professor na escola médica de Harvard, escritor, fotografo amador e dono de uma espectacular colecção de estereografias. Nasceu em Cambridge, em 1809.
[14] Médico cirurgião escocês nascido em 1795. Foi um dos pioneiros cientistas modernos a trabalhar com o estado hipnótico e com a sua indução. É considerado o iniciador da hipnose científica.

Silverstone, Roger and Morley, David (1990). “Domestic Communication – Technologies and Meanings”.


Homes have undergone transformations and their limits have changed with the introduction of new consumer technologies. The text analyzed[1] here is based on the integration of television viewing habits within a domestic framework that is characterized by time and space. The text approaches household consumer technology[2] by drawing on a multifunctional perception of TV and its consumption and as such proposes that research applied to television has a wider field: capable of accepting the idea of the domestication[3] [4] of technology which is “integrated into the structures, daily routines and values of users and their environments” (Berket et al, 2006:2).
The reformulation of research must seek answers related to technology consumption in a domestic context, along with the repercussions of that consumption in social, political and economic realities. An example of that relationship is regulation because the regulatory models instituted by States penetrate the private sphere and create a domestic space that is neither separate from nor opposed to the State.
The authors of the text analyzed here are mainly concerned with the organization of communication technologies in a socio-domestic context in that which Berker calls the “fabric of everyday life” (2006:4). However, it is also based on Lindlof and Meyer’s affirmation that “the selection and use of those messages will be shaped by the exigencies of those local environments” (1987:2). The idea of consumption is present here and the authors’ proposal aims to study these themes in an attempt to find results of an empirical nature that influence the marketing of domestic technologies and the compilation of programming schedules: “We have also to consider how TV programming has itself been designed for the specific forms of (distracted) spectator attention routinely in the home” (Morley. 2006: 27).
TV consumption has changed in the last five years[5] and even in cases of joint programming, reception factors vary from family to family. Families are not all alike, “they have their own histories, their own lore, their own myths, their own secrets. They, and the individuals who compose them, are more or less open, more or less closed to outside influences, more or less pervious or impervious to the appeals of advertisers and educators and entertainers to buy and learn from, and to be entertained by television (Morley and  Silverstone, 1990: 33).
The home is a space characterized by basic reasons of truth and where an ontological security can be found (Giddens, 1984), but it is also linked to economic issues. For that reason, it is a private space that reflects onto the public.
Considering TV as a consumer object and by focusing on an economy of means, its entry into our domestic lives creates an act of consumption that “transforms their status as commodities into objects of consumption (Morley and Silverstone, 1990: 49), and as such there should be a perception of the factors taken into account in the process of choice i.e. in the nature and consequence of choices. What is created is a domestication of objects.
All consumption involves meanings: “indeed all consumption actually involves the production of meanings by the consumer” (Morley e Silverstone, 1990: 47), and the positioning of consumption is understood as a cultural position. This position, allied to the domestication of technology, brings adjacent meanings to a specific type of consumption. It is a symbolic space that makes each category become more or less appealing. It is not about acceptance or non acceptance of a specific technology, but rather about the creation of a specific domestic environment: “It’s not just about adapting technologies to people, but also aboput people creating an environment that is increasingly mediated by Technologies” (Berker et all, 2006: 3)
The aim of this paper is twofold: to draw attention to TV studies within a “sociotechnological” space and to apply it to other technologies.
The authors say that they offer what seems to them to be a necessary change in the current conventions of media and cultural studies so that they can understand the “place and significance of television and other communication and information Technologies in the modern world” (Morley and Silverstone, 1990: 51).

                                                                      JB - Abril de 2013


Bibliography:
Berker, Thomas et al (2006). “Introduction” in Domestication of Media and Technology. NY, Open University Press.
Giddens, Anthony (1984). The Constitution of society. Cambridge: Polity Press.
Lindlof, T. and Meyer, T. (1987). “Mediated Communication”, Natural Audiences. pp. 1-32. New Jersey: Ablex.
Morley, David (2006). “What’s ‘home’ got to do with it? Contradictory dynamics in the domestication of technology and the dislocation of domesticity” in Domestication of Media and Technology. NY, Open University Press.
Silverstone, Roger and Morley, David (1990). “Domestic Communication – Technologies and Meanings”, Media, Culture and Society, Vol. 12, pp.31-55.


[1] Silverstone, Roger and David Morley (1990). “Domestic Communication – Technologies and Meanings”, Media, Culture and Society, Vol. 12, pp.31-55.
[2]Argument justified by the citation: “we have already suggested that the use of television cannot be separated from everything else that is going on around it. And in particular it cannot be separated from the use of other Technologies (Morley and Silverstone, 1990: 35), 
[3] Term normally associated to animals.
[4] There are some authors that consider domestication as a sphere of negotiation between space and designers.
[5] See “Seeing Things: Television in an Age of Uncertainty” by John Ellis, 2000.

sábado, 27 de abril de 2013

A cartografia e a pintura setencentista no norte da Europa


A ‘arte de pintar’ de Vermeer é uma das referencias quando o propósito é abordar a arte da cartografia em junção com pintura setecentista no Norte da Europa[1]. Nesta obra surge um grande mapa que não passou despercebido aos historiadores de arte e que apresenta indícios de uma analogia entre a cartografia (mapas) e pintura (no caso a holandesa).  Esta obra de Vermeer , que apresentamos na figura 1 do presente texto, é considerada a maior e mais complexa obra do autor e é também uma das suas preferidas, tal como prova a recusa da sua venda mesmo em tempos de crise do pintor. É uma pintura óptica com a capacidade de oferecer uma visão realista. Na cena representada, apesar dos vários motivos de interesse apresentados pela obra, interessa colocar o foco da nossa atenção no mapa que pendurado numa das paredes do atelier do pintor.

É o mapa da Holanda com as suas 17 províncias dos países baixos unidas, e apresenta um rasgão que divide o norte – a República holandesa – do sul – Habsburgo.
  O mapa na ‘arte de pintar’ é único e nele podem ser apreciados traços representantes da arte da cartografia. Nele,  percebe-se a representação da orla marítima holandesa, com um mar repleto de navios; as vistas topográficas das principais cidades holandesas, com um texto a explicar alguns pormenores e, para alem disso, combina 4 tipos de impressão disponíveis para mapas (gravação, água-forte, xilogravura e móvel para as letras).

               
        
Fig. 1 –A arte de pintar. Vermeer
           
A relação de Vermeer com a cartografia não se esgotou na obra que aqui apresentámos. Apesar do inferior detalhe e importância, foram outros os mapas representados por este artista: “Vermeer sempre sugere a qualidade material do papel envernizado, pintado, e algo dos meios gráficos pelos quais a massa da terra é apresentada” (Alpers, 1999: 4)[2].
A pintura setecentista do norte da Europa tem como origem a cidade de Bruges e tratava, principalmente, de temas da contemporaneidade, com uma forte componente descritiva através da valorização do detalhe e do pormenor. Os pintores holandeses queriam colocar nas suas obras a maior informação possível, o maior conhecimento possível, e a par deles a mesma ambição era tida pelos ‘autores de mapas’, que eram chamados de ‘descritores do mundo’. A janela italiana que o quattrocenti deu a conhecer ao mundo dá lugar a uma superfície onde era pretendido montar e construir  o mundo.
A cartografia inspirou imagens como as vistas topográficas (ver exemplo da figura 2), apesar do hábito em chamar a essas imagens pinturas, e por estarem bem definidas as fronteiras de mapa e de pinturas: “os mapas fornecem a medida de um lugar e a relação entre lugares, dados quantificáveis, enquanto as pinturas de paisagem são evocativas e visam antes a dar-nos certa qualidade de um lugar ou da percepção que o observador tem dele” (Alpers, 1999: 8). Com esta afirmação compreende-se também um base bem definida de separação entre a arte e ciência.
De volta à figura 2, que também é uma obra de Veermer,  o pintor holandês mostra-nos a luz natural de um determinado momento do dia. Para tal, faz uma divisão da obra em quatro bandas horizontais: o areal, a água (do rio Schie), os edifícios da cidade e o céu. No areal algumas pessoas: duas mulheres a caminharem, dois homens e uma mulher à conversa e uma mulher com uma criança no colo. Na água, alguns barcos e o reflexo dos edifícios que, por sua vez, ocupam uma outra das bandas horizontais. Sobre o reflexo na água é provável que Vermeer tenha utilizado uma câmara escura e conseguido a realização do reflexo através da técnica de pointillist[3]. Os edifícios, dos quais se destacam as portas de Schiedam e de Roterdão e as torres do que então eram a nova e a velha igreja, apresentam diferentes tonalidades por causa do que está a acontecer no céu (porta de entrada da luz), alguns telhados e cúpulas têm uma cor mais viva. A última banda é a que ocupa mais espaço da obra e oferece-nos uma sensação de continuidade espacial. O azul do céu e as nuvens brancas é interrompido pelas nuvens escuras que surpreendem e tão bem caracterizam o clima holandês. O local de vista é um local mais elevado que a linha de terra. O pintor não está ao nível nem do areal nem da cidade mas coloca-se num ponto mais alto.  Impõem-se esta análise da obra para que se possa perceber que o objectivo os artista é descrever e por isso tanto interesse para com o pormenor. É o realismo flamengo com descrições que quase se assemelham a fotografias sobre a decoração, usos e funções dos objectos. Verifica-se uma análise meticulosa e detalhada da realidade com um foco particular no espaço empírico que a forma. A pintura flamenga descreve a riqueza do visível e empírico onde tudo merece ser representado e ganha um significado simbólico.
                  

Fig. 2 –A Vista de Delfos. JohannesVermeer

Tal como o referido anteriormente, já não é a janela que se abre e deixa olhar, mas uma descrição que realça a atenção para com os detalhes e a superfície dos objectos que é apresentada na tela, “…não era uma janela, segundo o modelo italiano, mas sim, como um mapa, uma superfície sobre a qual se faz uma montagem do mundo” (Alpers, 1999: 7) – um mundo de objectos com a sua colocação no espaço visual. A pintura cartográfica fez nascer um espaço pictórico laicizado e científico onde se verifica uma ruptura com o espaço da perspectiva. Há uma maior atenção em descrever do que em explicar, o olhar deixa de efectuar a leitura de uma narrativa e passa a assistir a algo descrito, “Northern art, in contrast, suppresses narrative and textual reference in favour of description and visual surface” (Jay, 1980:12). O Presente deixa de narrar e no seu lugar surge um passado que quer ter influência na forma de se ver o presente e o futuro, “um modo de ver o mundo, em última análise determinado pelas novas atitudes perante a prosperidade e as relações de troca” (Berger: 1996: 91). Mas as fronteiras entre mapas e arte, ou entre conhecimento e decoração, seriam intrigantes para os holandeses do séc. XVI e XVII, “pois numa época em que os mapas eram considerados um tipo de pintura, e em que as pinturas desafiavam os textos como uma maneira fundamental de compreender o mundo, a distinção não era nítida” (Alpers, 1999: 12).
Houve um incremento da ilustração geográfica no séc. XVI por força de operações militares, actos de comércio e gestão da água. A confiança na cartografia, considerada então como uma habilidade comum, era inabalável. A cartografia era um passatempo onde, por vezes, se expressavam os mais fundos sentimentos e servia de justificação para viagens de artistas setentrionais. A cartografia na arte traz consigo uma estrutura interpretativa da percepção dos espaços numa ligação à fixação, mas também ao movimento. Para a filosofa francesa Christine Buci-Glucksmann existe uma diferença entre a cartografia na arte e a cartografia da arte. Para melhor se perceber esta diferença, é necessário ter em conta dois importante aspectos. O primeiro é a existência de um trabalho artístico inerente ao termo cartografia e potenciador de um trabalho artístico intelectual onde se verifica um repensar do objecto artístico. O segundo aspecto, é a integração do espaço na compreensão e interpretação de um pensamento artístico. A mesma autora incorpora um termo novo relacionado com ícaro e o seu voo – um modelo teórico fixo no globo e no mapa.
A determinação de uma localização  em determinado espaço requer uma ‘negociação’ com as coordenadas: “is to negotiate it according to its spatial coordinates” (Thun-Hohenstein, 2009: 37). Os destinatários da arte devem de agir como exploradores e navegadores de um trabalho artístico discursivo de latitudes e longitudes.
Mas para se perceber esta ligação da cartografia com a pintura setecentista do norte da Europa, é necessário recuar ainda mais no tempo. Ptolomeu[4] invocou que a geografia está preocupada com a cabeça e a corografia[5] com aspectos individuais (ver figura 3). Mas este cientista foi ainda mais longe, associando as habilidades de um matemático à geografia, e as de um artista à corografia[6].
                

Fig. 3 – “Geographia” e “ Chorographia” em Petrus Apianus, Cosmographia, Paris, 1551,
Biblioteca da Universidade de Princeton.

O alcance cartográfico estendeu-se juntamente com o papel da pintura. Ptolomeu para identificar um ‘criador pictórico’ fez uso do termo graphikos, termo associado a palavras que terminam com a expressão grapho, tais como geografia, cartografia e topografia, e que em lugar-comum, quer dizer: escrever, registar ou desenhar.
Os homens da Renascença ao traduzirem os textos de Ptolomeu, utilizaram o termo pintura, num contexto de descrição.
O termo descrição estava associado a uma retórica verbal e foi esse poder verbal que os italianos tentaram colocar na pintura: “mas quando a palavra descrição é usada por geógrafos renascentistas, ela chama a atenção não para o poder das palavras, mas para o sentido em que as imagens são desenhadas ou inscritas como algo escrito. Ela chama a atenção, em suma, não para o poder persuasivo das palavras, mas para um modo de representação pictórico.” (Alpers, 1999: 23) . Na verdade, em Ptolomeu, o termo grapho tanto podia sugerir escrita como pintura.
O termo descriptio era utilizado para mapas mas também para a pintura que acompanhou esse interesse: “com a ajuda das palavras que se aplicavam aos mapas, podemos sugerir que as pinturas do Norte estavam relacionadas mais com a descrição gráfica do que com a persuasão retórica, o que sucedia com as pinturas na Itália.” (Alpers, 1999: 24) .
Apesar de tudo, é no Norte da Europa, e não na Itália, que se dá uma reconciliação entre mapas e pintura, bastando para isso perceber a tamanha produção dos pintores setentrionais de pinturas de vistas.
O contributo de Alberti, para além de vincular a pintura à visão, foi considerar a pintura não uma superfície como um mapa, mas como um plano que servia de janela e que suponha a existência de um ponto de observação. Por sua vez Ptolomeu deu instruções para a concepção de imagem a partir de um único ponto do olho, mas isso não terá haver com a pintura italiana, mas sim com o ponto de distância adoptado por artistas setentrionais.
A diferença de um e de outro está no seguinte: “enquanto a perspectiva albertiana posiciona um observador a certa distancia olhando através de uma janela emoldurada para um suposto mundo substituto, Ptolomeu e a perspectiva do ponto de distância concebiam a pintura como uma superfície de trabalho plana, não-emoldurada, sobre a qual se inscreve o mundo.” (Alpers, 1999: 27) . Há a demarcação de um território e é lá que está contido o olhar do observador Recuperamos o que já anteriormente escrevemos: A janela italiana que o quattrocenti deu a conhecer ao mundo deu lugar a uma superfície onde era pretendido montar e construir o mundo. O mapa é o modelo por cauda da superfície plana que com um olhar nómada recusa o respeito pelos limites do plano através da invasão do espaço. É a imagem que controla o observador criando uma ilusão de liberdade, quem sabe semelhante ao voo de um Ícaro (ver página 5) 
O artista sai do seu ateliê para pintar. Foi o que se passou com as primeiras imagens paisagísticas holandesas, em que se destaca Hendrick Goltzius (ver imagem 4). O artista liberta-se da sua mente e da sua imaginação como elemento exclusivo de emissão e “sai ao ar livre e tenta capturar a grande amplidão da planura holandesa – fazendas, cidades e torres de igreja, tudo marcado sobre essa grande extensão” (Alpers, 1999: 28-29). Na verdade estamos a falar de algo que já anteriormente fora feito pelos cartógrafos.

                  
               

Fig. 4 – Landscape with Farm. Hendrick Goltzius

As mais importantes obras da paisagem holandesa estão enraizadas em hábitos cartográficos[7] em que o artista conhece e aceita a superfície de trabalho, a superfície e a extensão são enfatizadas pelo volume e pela solidez, verifica-se a ausência de meios de enquadramento usuais e familiares, há uma vista geral (com um grau falacioso) e a ausência de um observador localizado.
A noção desenhar une a cartografia com as paisagens holandesas do século XVII. A noção de desenho em Itália fora exaltada a forma de arte – imaginação. Já Hoogstraten[8] coloca o desenho como algo ligado às letras, e como tal – descrição.
A cartografia chega à arte: “usada restritamente, a cartografia se refere a uma combinação de formato pictórico e interesse descritivo que revela uma conexão entre certas paisagens e vistas de cidade e as formas da geografia que descrevem o mundo em mapas e vistas topográficas. Usada amplamente, a cartografia caracteriza um impulso para registar ou descrever a terra em imagens que era compartilhado na época por agrimensores, artistas, impressores, e o público holandês em geral” (Alpers, 1999: 38).
As características geográficas da Holanda também não são inocentes por causa dessas características tornou-se um espaço particularmente apropriado para a cartografar. Também o sistema de propriedade das terras fazia com que não existisse desconfiança no levantamento topográfico. Havia a liberdade para cartografar[9].
A arte holandesa com as vistas topográficas sofre uma transformação. Os meios gráficos dão origem à pintura. A ‘vista de Delft’ que anteriormente descrevemos (figura 2) é um desses exemplos. Mas o interesse pela cidade já vem de trás com Civitates Orbis Terrarum,  de Braun e Hogenberg, que tinham como propósito proporcionar o prazer da viagem aos que ficavam em casa. Mapas e globos são ferramentas capazes de delinear uma função de orientação.
  Esta obra, publicada em 1572 e 1617, teve o objectivo de completar o atlas de Abrahan Ortelius, com o nome The Atrum Orbis Terrarum[10]. Em Civitates Orbis Terrarum, um conjunto de colaboradores coordenados Georg Braun[11] participaram com informações várias que permitiu a diversos desenhadores construírem ilustrações de vários locais como p.ex. da localidade de Cascais, em Portugal (figura 5).
     
Fig. 5 – Representação de Cascais in Civitates Orbis Terrarum

Dizia-se que era uma viagem sem interesse em negócios ou ganhos, mas puramente a bem do conhecimento. Por isso tanta atenção para com trajes, flora, fauna e inscrições que se colocavam junto das ilustrações da vistas
O interesse[12] pela cidade era acrescido do facto particular de um interesse pela cidade natal e por isso tantas cidades representadas por artistas oriundos das mesmas e livros patrocinados pelas cidades com várias ilustrações. Criou-se uma tradição na execução de estampas topográficas e houve uma transição do meio gráfico para a pintura, com alguns artistas setentrionais a serem chamados a ilustrarem mapas.
Nessa Holanda da época, a história, que era factual, dá lugar a uma história descritiva com superfícies com muita informação. A  pintura holandesa tem um fascínio pela descrição tal como acontece com os mapas.


Bibliografia:
Alpers, Svetlana (1983). The Art of describing: Dutch Art in the Seventeenth Century. Chicago. The University of Chicago Press
Berger, J. (1996). Modos de Ver. Lisboa: Edições 70.
Glucksmann, Chiristine Buci. (1996). L’œil Cartographique De L’Art. Paris. Galilee.
Janson, H.W. (1998). História da Arte. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian
Jay, Martin (1988). “Scopic Regimes of Modernity”, Vision and Visuality. Seattle: Bay Press, pp 3-23
King, I.W. (2007). Straightening our Perspective: The Logos of the Line. Sage
Levin, D.M. (1993). Introduction In Modernity and the hegemony of Visions. University of California press.
Pallasmaa, Juliano (2008). The eyes of the skin. West Sussex: Wiley and sons
Thun-Hohenstein, Felicitas (2009). From a cartographic Glance to Synchronistic Experiences. In Cartwright, W et al (Org.), Cartography and Art (pp. 35-41). Berlin. Springer.
Alpers, Svetlana (1999). A Arte de Descrever: A Arte Holandesa no Século XVII. São Paulo. Editora da Universidade de São Paulo.

Internet (consultas realizadas entre Fevereiro e Março)
http://www.essentialvermeer.com/cat_about/view.html
                http://www.lcc.gatech.edu/~broglio/1102/scopic_regimes.html
                                                                                                                JB - Abril de 2013




[1] No capítulo com o título ‘O Impulso Cartográfico na arte holandesa’ do livro ‘The Art of Describing’, a autora Svetlana Alpers aborda com insistência esta obra.
[2] O texto de Alpers de 1999 utilizado como elemento da bibliografia do presente trabalho não apresentava numeração de páginas por se tratar de um conjunto de copias do original. Optou-se por atribuir uma paginação às cópias utilizadas com início de numeração no início do capítulo ‘O Impulso Cartográfico na arte holandesa’.
[3] Em português pontilhado. Consiste em colocar pastas de tinta mais espessa em áreas mais escuras resultando em efeitos luminosos.
[4] Cientista grego que nasceu no Egipto no ano 90 d.C. Viveu em Alexandria, onde faleceu em 168 d.C., e tornou-se conhecido pelos seus trabalhos nas áreas da matemática, astrologia, astronomia, geografia e cartografia.
[5] Estudo geográfico de um país ou de uma de suas regiões.
[6] Por esta razão os mapas de Ptolomeu sempre estarem ligados às projecções matemáticas.
[7] Referência a obras de Van Goyen; Ruisdael, Koninck.
[8] Pintor holandês que nasceu em 1627.
[9] Ao contrário por exemplo do que se passava em Inglaterra.
[10] Obra editada em 1570.
[11] Cónego da catedral de Colónia.
[12] Por volta de 1590.

JB - Abril de 2013